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24/09/2020 às 08h00min - Atualizada em 24/09/2020 às 08h00min

O poema acabou

IVONE ASSIS
“E agora, José?”. O fogo queimou. A mata torrou. O bicho morreu. O índio chorou. “E agora, José? E agora, você? Você que é sem nome, / que zomba dos outros, / você que faz versos, / que ama, protesta? / e agora, José?”. Derrubaram a mata. Atearam fogo no Pantanal. Queimaram a casa dos índios. Aumentaram os campos. A cinza cobriu o solo. A fumaça cobriu o céu. A água ficou pouca demais, não dá para lavar a estupidez de quem fez, não dá para lavar a insanidade de quem apoia, não dá para lavar a desrazão de quem se cala. Cuspiram no prato. Ampliaram os discursos. Fizeram Fake News. Perderam a noção. E agora, José? “O riso não veio, / não veio a utopia / e tudo acabou / e tudo fugiu”.

Convidei o poeta Carlos Drummond de Andrade para me ajudar a poetizar a ação do homem contemporâneo. O poeta pergunta a José, que representa João, Joaquim, Jair, Jaestá, Jafoi... Queremos entender o se passa na esteira do comportamento humano, mas já não há como entender. Que mal fez o planeta, para que lhe vomitem rejeitos de barragens, para que matem suas nascentes, para que ateiem fogo na casa? Afinal, que bem fez o homem? Todos perdem, quando se destrói a natureza. E no caso particular do Pantanal, os animais e os índios perderam mais, e estão sofrendo muito mais.

Refletindo sobre o Brasil, podemos dizer que “No princípio era o índio”. O europeu chegou, invadiu, tomou posse do que não era seu, trouxe os pretos aprisionados, fez-se dono de tudo, foi embora e deixou sua semente. A vida brota, onde quer que se plante. Fomos nascendo brasis. Somos índios, somos pretos, somos europeus... somos a mistura de tudo. Foram criando TAGs para o novo produto: #brasileiro #negro #mulher #isso #aquilo. Foram copiando o plano de marketing cultural daquele que abriu a confusão, com isso vieram o dia dos produtos: “Dia da mulher”, “Dia da criança”, “Dia do Índio”, dia daqueles cuja voz é menor. A data é um modo de manter viva a ideia de que há uma cultura, mas quando se ateia fogo na casa, não há nada que possa desconversar os fatos. Não há cultura, não há amor, não há respeito.

A queimada é uma prática antiga no preparo do solo para o plantio, tanto por pequenos agricultores como por índios. Mas estes sabem manejar gravetos e galhos secos de árvores, para que o fogo seja benéfico e não o contrário. O homem do campo luta pelo bem do campo, da floresta, dos animais... O problema está em atear fogo de forma criminal, como está acontecendo em toda parte. Quem provoca um incêndio como esse, que o mundo assiste estupefato, não pensa em ninguém, só pensa no dinheiro que poderá alcançar, mas se esquecem de que matando tudo... tudo vira nada. Tudo perde o sentido.

Queimadas de roçados não se confundem com queimadas de desmatamento. O machado não consegue competir com o correntão. A terra vai sobreviver, vai regenerar, mas as vidas dos que se foram não voltam, sejam espécies de plantas, de animais, “de bicho gente” ou do que for. O que se queima vira cinzas, e o pó se espalha com o vento. Desaparece.

Esta é uma relação de amor e destruição. Um amor estragado. O homem e a ambição se fizeram amantes. Convidei o poeta Drummond para me ajudar a concluir este texto, visto que me ajudou a começá-lo. Então, ele disse: “Destruição / Os amantes se amam cruelmente / e com se amarem tanto não se veem. / Um se beija no outro, refletido. / Dois amantes que são? Dois inimigos. // Amantes são meninos estragados / pelo mimo de amar: e não percebem / quanto se pulverizam no enlaçar-se, / e como o que era mundo volve a nada. // Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma / que os passeia de leve, assim a cobra / se imprime na lembrança de seu trilho. // E eles quedam mordidos para sempre. / deixaram de existir, mas o existido / continua a doer eternamente”. Fechei o caderno. E agora, José? O poema acabou.


*Este conteúdo é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

 
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