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21/07/2020 às 14h20min - Atualizada em 21/07/2020 às 14h20min

Robisson Sete: a língua rija à beira da queda

ENZO BANZO
Robisson Sete está sentado no balcão do bar mirando a mesa de sinuca. Entre o taco e a caçapa, a vida. Ou a morte. Observa o fundo do copo americano pela metade. Repara nas guimbas de cigarro arremessadas no piso de cimento grosso e cinza. Olha pra baixo? Não, pro fundo. No talo.

Entra no jogo, minucioso movimento desmedido, alguém tem fogo? Preciso acender esse bolão. Quer a bola para fora dos limites da mesa. Sobretudo, para baixo da mesa, sob o chão. Não para escondê-la, mas para revelá-la, em algum vão entre o subsolo e a margem. Cavar o buraco onde mora o que se esconde, a voz do morto que grita porque não sabe que morreu, embora suspeite que não é mais desse mundo. Ou nunca foi. Dente que falta na boca do mendigo. Meu amigo. Morto.

Levanta, vasculha o ambiente, quer encarar o ponto sem luz do olho do mistério, sua matéria, bruta.

"O sol fraco e alaranjado projetava uma luz pálida e turva na parede do botequim, iluminando a já descascada inscrição, 'Deus é fiel', entre pôsteres de cervejas e de mulheres seminuas".

Aleluia. Tá no inferno, abraça o diabo. Ou a solidão ou o delírio ou o sexo ou o ódio ou o amor ou a loucura ou o fim. Ou tudo e o troco, enquanto a vida morre.

Robisson Sete observa o cigarro virando cinza, som do taco na bola na caçapa, tiros no quarteirão. Destemido, escorado no balcão, finge que escreve um poema no guardanapo oleoso, caneta em riste, enquanto pinta em tinta a óleo de fritura quadros que emanam a mais exata trilha sonora:

"Arrasta sua sandália de odalisca triste pelo asfalto"

"Os cachorros de rua latindo raivosos à minha passagem"

Fotografia do movimento, texto-imagem. O "s" sussurro da palavra que sopra no chão, a sandália canta, poema-som. O olho da odalisca só não pisca porque chora. O "r" canino que rosna. Quem sou eu que passo e arrepio a raiva do Cão? Eu sou o silêncio. Eu sou o verbo. Desce a pé em liturgia sob as parcas luzes da Avenida Monsenhor Eduardo, ingresso na mão para o show de JC e seu Bando na Hell's Club. Eu sou o caminho, novo hit da rádio clandestina, show de rock, baile funk, grito punk: tá na paz?

Lugar da literatura, submundo. Roupa barata, música dos ambulantes, ratos, moscas e pessoas: "vida apodrecendo a olhos vistos". O escritor é um batedor de carteira das palavras roubadas no lixo. A língua rija, faminta, tesa. Erguida à beira da queda. A poesia não vende? "Compremos então um naco do coração do poeta, enegrecido pela fumaça do cigarro e embrulhado em papel de pão".

Não se assuste se, em meio à leitura, este livro começar a arder em brasa sob seus dedos. A palavra rasga, a palavra fere, a palavra ferve, a palavra queima: "põe gelo, mertiolate, e antes que morra de desejo, mate-o".

(Prefácio do livro "Meus últimos amigos mortos", de Robisson Sete, com lançamento previsto para o próximo mês de agosto, e em fase de pré-vendas pela Editora Subsolo. Robinho me convidou para escrever o texto de apresentação de sua nova obra, li o livro todo quase em um único fôlego. Senti a paulada com uma imagem o tempo todo dançando em minha memória: na última balada em que estive antes do isolamento social da quarentena, fomos parar, depois de mais uma Noite Literária, em uma remota sinuca do bairro Santa Mônica, madrugada adentro, Robinho como guia. "Meus últimos amigos mortos" me levou para a fumaça viva e livre daquele ambiente, mesa de sinuca na área de fumantes, som alto, o desconhecido escondido no quintal da minha casa. Robisson Sete é a carne do que escreve, e o que escreve é sua carne. O que, nesse caso, é a própria alma.)




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