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09/04/2020 às 10h07min - Atualizada em 09/04/2020 às 10h07min

É gente ou bicho?

IVONE ASSIS
O momento é de reflexão. A vida pede socorro, mas há quem nem sequer se deu conta de que a vida existe, como poderia ouvir tais gritos de socorro? Entre as tragédias mundiais, que já assombraram a humanidade, destacam-se a inquisição, a escravidão, o holocausto, as primeira e segunda guerras mundiais. Em meio a elas, moléstias terríveis auxiliaram para dissipar pessoas. Por muitos anos, milhares de olhos carregaram assombros que só se apagaram quando o sol deixou de nascer para eles. São marcas que afundaram os sulcos da face de mães que não puderam proteger seus filhos.
E, por mais que esses sejam ciclos encerrados na história, não há como negar que algumas sementes de erva-daninha germinaram e insistem contra os pesticidas. Por conta delas, todos os dias os noticiários mancham a história com a dor que silencia crianças vítimas de atrocidades dos pais. Algumas perdem a vida, parando de respirar; outras, perdem a vida, embora continuem a respirar, a andar, a falar.
Que monstros são estes, que, em vez de proteger suas crias, matam-nas? Se fosse citar os muitos casos ocorridos somente nos últimos 12 meses, seria necessário mais que um jornal inteiro, apenas para listar os primeiros nomes.
Afinal, é gente ou bicho? São pestes que ainda pensam que são gente. O escritor moçambicano Mia Couto, em “Mulheres de cinzas: as areias do imperador” (2015, p. 61), escreveu: “Infelizes os que matam a mando de outros e mais infelizes ainda os que matam sem ser a mando de ninguém. [...] enfim, os que, depois de matar, se olham ao espelho e ainda acreditam serem pessoas”.     
Há quem ainda não descobriu o que é amar. Há quem ainda não aprendeu o que é viver. Uma geração perdida tem se enterrado no escuro de suas mentes, e dali só saem para guerrear. Entram em conflito com todos que o amam, porque, não sabendo amar, não entendem que quem ama cuida. Não sabem que amor é diálogo e não guerra.          
Mia Couto, em “Mulheres de cinzas...” (2015, p. 153; 155), anota: “A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo. Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento. É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo, com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar”. “As lembranças escuras são como abismos: ninguém se deve debruçar nelas”. Mas, por alguma razão, homens têm trocado esposas pelo ódio; pais têm cambiado os filhos pela desmesura. Mulheres têm se engravidado de incivilidade. Mas as crianças, estas sempre têm, dentro de si, amor, esperança, sonhos, confiança. Um amor puro assim não pode ser desenganado, nem cessado. Crianças não podem ser molestadas, nem traídas, sobretudo pelos pais. “Os mais perigosos inimigos não são aqueles que te odiaram desde sempre. Quem mais deves temer são os que, durante um tempo, estiveram próximos e por ti se sentiram fascinados” (COUTO, 2015, 213). As crianças são o nosso amanhã. A educação, o amor, a confiança, o respeito, a liberdade... tudo o que for ofertado à criança, hoje, é o que teremos no adulto do futuro.           
Não é possível que tal clamor não chegue aos ouvidos moucos daqueles que fazem as leis, para que, aqueles que a lei executa, possam ver o brilho da justiça sobre as causas que a demandam.       
Parece que, em meio à loucura da quarentena, há quem tem se estranhado até com a própria sombra. Por que não acumular razões para respeitar e ser respeitado? Se tiver que matar, que mate a saudade. Se tiver que destruir, destrua a mentira. Se for para acabar, acabe com a violência. Está mais que na hora de erguer a bandeira da boa convivência, porque somos feitos para viver em sociedade. Filhos são frutos do amor e não do ódio. A terra que enterra é a mesma que faz brotar. O momento é de reflexão.


Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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