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16/02/2020 às 08h00min - Atualizada em 16/02/2020 às 08h00min

Humanização antinatural

ALEXANDRE HENRY

Escrevo este texto porque, se há algo que me incomoda, é o tal do comportamento contraditório. Quando eu mesmo não consigo ter coerência no meu agir, aí é que o incômodo é maior ainda. Vamos aos fatos e você vai entender meu pensamento.

Já adulto, pouco depois de me casar, ganhei um gato persa preguiçoso que viveu comigo por quase onze anos. No final do ano passado, meia década depois dele falecer e após uma tentativa frustrada de ter um cachorro (durou só dois meses), cedi e aceitei que tivéssemos um novo bichano em casa. E foi assim que o Lui, um gato da raça ragdoll extremamente bonito, entrou em nossas vidas. Perto de completar seis meses, ele já é o dono do pedaço, encanta moradores e visitantes e vive se esborrachando no chão para fazermos um carinho naquela barriga gorda.

Mas, e a contradição? Bem, voltemos ao meu falecido gato persa. Com poucos meses de idade, nós o castramos para que ele não fugisse. Ele dividiu nosso lar com outra gata por vários anos, mas nunca “namoraram”. Durante toda a sua vida, ele sempre morou em apartamento, exceto por dois anos em Porto Velho, tempo em que ele enfrentou o calor amazônico em uma casa pequena e sem quintal, não muito diferente de um apartamento. O Bilu – esse era o nome dele – nunca teve liberdade, nunca viveu como animal que era, não pode se reproduzir e teve sua existência confinada às paredes de uma moradia humana. Sim, ele teve o melhor tratamento possível: ração caríssima, veterinários e remédios de alto padrão, além de muito carinho da nossa parte. Se fosse uma criança humana, não poderia reclamar de nada. Só que ele era um gato, um animal.

O que fizemos com ele? Nós o transformamos em um objeto de satisfação de nossas emoções. Basicamente, essa era a utilidade dele. Toda a vida dele foi moldada para servir de companhia para seres humanos, sem qualquer possibilidade de uma existência de acordo com seus instintos e habilidades felinas. Passava horas trancado em casa, pois tínhamos que trabalhar. Comia só o que dávamos para ele e não colocava as patas para fora do apartamento.

Agora, a história se repete como o novo gato e isso me angustia, ainda que não tenha sido uma angústia suficiente para eu ter evitado a chegada dele ao nosso lar e muito menos para que, depois dele ter se instalado em nossa casa, eu o solte no meio do mato. É por isso que eu falei em contradição no começo do texto. Talvez hipocrisia também seja uma boa palavra para essa questão. Quanto mais uma pessoa ama seu bicho de estimação, mais parece tender a tratá-lo não como é da essência dele, mas como é da essência de um ser humano, em um comportamento que é, em última essência, bastante egoísta.

Passeando por Buenos Aires em janeiro, reparei na quantidade de cachorros de grande porte que há por lá morando em apartamentos. Andando pelo shopping em Uberlândia, vejo muita gente com seus cães em corredores barulhentos, lotados de gente e de odores que, definitivamente, não fazem bem para os animais. Será que gostamos mesmo dos cães e gatos que criamos? Será que a ração de primeira qualidade e o banho no melhor pet shop da cidade compensa as tantas coisas que fazemos contra a natureza original desses animais? Será que não estamos apenas criando escravos bem tratados para satisfazer nossas carências afetivas? Será que o melhor não seria tentar reverter aos poucos essa cultura de animais domésticos e permitir que eles voltem a viver junto da natureza, com liberdade de ir e vir, de se reproduzir e de decidir o próprio destino?

“Ah, mas cães e gatos já criaram uma simbiose com os humanos há milhares de anos!” – você diz. É verdade. Mas, durante milhares de anos, esses animais viveram junto com os humanos, mas não presos a nós. Moravam em fazendas com liberdade e a companhia dos homens era uma opção, não uma imposição. Mesmo nas cidades, havia quintais e não havia cercas. Eles iam e vinha de acordo com seus desejos. Agora, não. São trancados em espaços exíguos, são castrados e têm seus instintos naturais totalmente sufocados. Isso é certo?

Não, eu não vou me desfazer do novo bichano lá de casa só por conta desses pensamentos. Vou continuar com a hipócrita contradição entre meu pensar e meu agir. Ainda assim, acho válidas essas reflexões e estou certo de que, daqui a algumas centenas de anos, talvez as pessoas olhem para o passado e tentem entender como seus ancestrais, mesmo com as melhores intenções, não percebiam que faziam de alguns animais meros escravos dos caprichos humanos.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.













 

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