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21/01/2020 às 09h00min - Atualizada em 21/01/2020 às 09h00min

Querida crônica do querido Diário

ENZO BANZO
“Vai desculpando aí, meu caro jornal de cada dia, é que hoje o artista não deixou espaço pro cronista. Concluir um objeto artístico é troço meio obsessivo, não dá pra falar muito de outra coisa não.”
 
 
Querida crônica do querido Diário, hoje estou aqui meio sem saber o que te contar. O começo, você sabe, é a agrura maior de quem escreve, seja coluna de jornal, poema, tese de doutorado, legenda do Instagram ou redação do Enem. Como diz o Luiz Tatit, "por isso é que sempre no início a gente não sabe como começar, começa porque sem começo, sem esse pedaço não dá pra ficar". Puxar uma citação, aliás, é ótimo recurso quando a própria ideia resolve brincar de esconde-esconde: você não sabe o que dizer, e diz como alguém já disse. Mas, esse negócio de dizer como já disseram pode ser um perigo: você viu o delírio do Alvim dizendo como disse o tal nazista? Que coisa aquela, não se contentou em dizer, montou figurino, cenário, trilha sonora, cabelo, barba e bigode. Cruz-credo.

Te contar, Diário querido, esse final de semana, de rolê em São Paulo, fui ver o “Pretoperitamar”, musical biográfico sobre o compositor Itamar Assumpção, em comemoração aos 70 anos que (tristeza grande) não completou; e também fui conferir a exposição do gênio Leonardo da Vinci, essa celebrando seus 500 aninhos. Parece não ter relação nenhuma a obra de um brasileiro negro compositor de canção do nosso tempo, e a de um artista universal que nem conseguimos mais perceber como humano, tão imortalizados estão seus feitos. Mas identifiquei, sim, um ponto comum nisso tudo, e esse ponto é a própria vida da gente não ser um ponto assim tão pequeno nesse mundo vasto. A questão que os dois nos colocam: vai aceitar viver assim nessa pequenez sem graça? Não dá pra ir mais fundo aí nesse mergulho? Tem que ser tudo limitado, determinado e encaixado na caixinha? Mesmo?

Estou diante da piscina, do mar, minha estimada crônica. Pular nessa imensidão é minha tentativa de não ser tão pequenino. Vou te contar a verdade, parar de te enrolar. É que estou fora de casa pra finalizar um disco, hoje, essa semana. E finalizar um disco, um livro, um texto, um filme (ou mesmo concluir algo que se projetou para a própria vida além da obra) é transformar o projeto em concreto. O virtual em material (no caso, uma matéria sonora). Sair do campo das infinitas possibilidades para a linha do caminho escolhido. O meu trabalho preferido é sempre o que estou criando, tudo aberto, incerteza do que será. Depois de pronto e publicado (tornado público), aí passa a ser de quem está ouvindo, vendo, lendo e criando, a partir do já criado, uma nova história pra si mesmo.

Vai desculpando aí, meu caro jornal de cada dia, é que hoje o artista não deixou espaço pro cronista. Concluir um objeto artístico é troço meio obsessivo, não dá pra falar muito de outra coisa não. O cara vai acabar voltando no detalhe daquele verso, numa sutileza da interpretação, num mais grave ou mais agudo, em que faixa de frequência e de volume vai morar aquele som, sem esquecer jamais: está sendo dado o recado? Parece mesmo que é isso que temos que descobrir, em arte: um recado, que está não só no que se diz, mas sobretudo no modo como se diz, se canta, se mostra, se apresenta.

Vou aproveitar o dia aqui, Diário. Tenho que acabar o disco, e ainda toda a diversão de procurar imagens − capa, roupas, fotos, vídeos − que traduzem, espelhem, acrescentem, sugiram, componham um conjunto de sentidos interligados às canções. Mas, definido tudo isso, pronto, acabou, o prato está servido e passa a ser dos comensais. E precisamos, artistas solitários e independentes, chamar a atenção no meio da feira louca da rede virtual, pra ver se alguém olha pro prato, sente-lhe o cheiro, tenha a curiosidade aguçada, dê uma olhadinha, uma ouvidinha, um aceno. Não sabemos bem o motivo, mas temos que passar adiante o recado, recebido e transformado, para que siga se recriando, infinito, imortal.

Querido Diário da querida crônica, conta aí pra quem está lendo que eu fui ali mergulhar e já volto.






*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.














 
 
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