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21/01/2020 às 08h35min - Atualizada em 21/01/2020 às 08h35min

Um milagre chamado Darlene

Ana Maria Coelho Carvalho, bióloga
“Naquela época, escrevi uma crônica sobre algumas pessoas que sobreviveram ao terremoto. Era impossível explicar a tragédia que aconteceu em Porto Príncipe, mas era possível sentir, sofrer com as pessoas, chorar por elas, alegrar-se quando uma vida era salva”


O terremoto de magnitude sete, que arrasou o Haiti em 2010, completou dez anos no domingo, 12 de janeiro. Uma década depois, mesmo com a promessa da comunidade internacional de reconstruir o país do zero, o Haiti continua na pobreza e numa crônica instabilidade política, que se traduz em violentas manifestações de rua.

Naquela época, escrevi uma crônica sobre algumas pessoas que sobreviveram ao terremoto. Era impossível explicar a tragédia que aconteceu em Porto Príncipe, mas era possível sentir, sofrer com as pessoas, chorar por elas, alegrar-se quando uma vida era salva. Como no caso de Darlene Etienne, a adolescente de 17 anos retirada com vida dos escombros após 15 dias, em condições estáveis de saúde. Sua sobrevivência foi inexplicável do ponto de vista médico. Mas milagres acontecem. No caso dela, não um milagre como o acordar de manhã, abrir a janela e ver o dia lindo que Deus coloriu para nós, cada dia de um jeito. Ou de poder desfrutar essa diversidade de flores que Deus planta aqui e acolá, só para colorir e alegrar o caminho da gente. Mas sim, um milagre além da nossa capacidade de compreensão.

Darlene sobreviveu a um pesadelo. De repente, estava viva e soterrada. Sem nem saber por que: seria alguma explosão, algum morro que deslizou, um terremoto (se é que ela sabia que existem terremotos), um prédio por perto que desmoronou? Tudo escuro, o corpo espremido, pedras em volta, terra grudada no cabelo, no corpo todo. Falta de ar, mãos e pés dormentes, músculos doloridos, sem espaço para mudar de posição (e pensar que eu, na minha pequenez, tenho medo de ficar presa no elevador, no escuro e sem ar). A boca seca, a fome lancinante, a consciência indo embora devagarzinho. Cada minuto parecendo uma eternidade (e 15 dias são 21.600 minutos).

O medo de se mexer e de tudo desmoronar à sua volta. O pavor de aparecerem vermes, ratos e baratas. A vida passando por sua mente como um filme: as brincadeiras de criança (se é que teve infância), o abraço que queria dar e não deu, a saudade da mãe, do pai, dos irmãos, sei lá. Aquela vontade de gritar, pedir socorro, mas a voz não saia mais. A resignação em ficar quietinha, esperando a morte chegar. Ou esperando um socorro que, no fundo do seu coração, ela sempre soube que chegaria (mas não sabia que perto de 200 mil haviam morrido, que milhares estavam feridos e que à sua volta cerca de 300.000 pessoas precisavam de absolutamente tudo, de abrigo à água, remédio e comida). Como escreveu Ruy Castro, na Folha de São Paulo, “nenhum livro, filme ou série de TV jamais poderá dar conta da real tragédia de Porto Príncipe. Mesmo a simples reconstituição de um desses dramas individuais está além da capacidade humana de descrever o terror.”

Darlene tinha esperanças e sobreviveu. Miúda, franzina, com olhos opacos, mas capaz de mostrar que o desejo de viver vence a morte. Assim como o pequeno Kiki, que ficou oito dias soterrado e saiu rindo para a mãe, transformando-se no rosto feliz da mais infeliz das tragédias. E Enna Zizi, de 66 anos, que depois de sete dias nas ruínas, cantou firme e forte quando foi salva. Tem também o caso da jovem Widlyn, que depois de gritar e suar muito, deu à luz, no chão do pátio do hospital, ao pequeno Cristopher, que teria como futuro o Haiti destroçado. E depois de tudo, todos precisariam recomeçar. Passados dez anos, fico pensando como estarão Darlene, Kiki, Enna e Cristopher...

Que o Pai desça sobre todos os haitianos com seu amor, citando aqui a prece do teólogo Leonardo Boff: “Pai, desce dos céus, desce, pois morro de fome nesta esquina, não sei para que serve haver nascido, desce um pouco, contempla isto que sou, esse sapato roto, essa angústia, esse estômago vazio, essa cidade sem pão para os meus dentes, a febre cavando-me a carne, esse dormir assim, sob a chuva, castigado pelo frio, perseguido. Pai, desce, toca-me a alma e o coração”.





*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.










 
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