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07/01/2020 às 08h01min - Atualizada em 07/01/2020 às 08h01min

Tony Jurado

ENZO BANZO

"Popstar", "Superstar", "Ídolos" e "The Voice" são versões atualizadas, muitas vezes em franquias importadas, dos concursos de calouros que existem desde os primórdios do rádio no Brasil. São programas de entretenimento nos quais, embora os holofotes pareçam voltados para os concorrentes, apresentadores e jurados acabam por tornar-se atrações, por vezes as principais. Lembro do "Show de Calouros" do Sílvio Santos, que eu via criança nos anos 1980, interessado em dar risada não só dos postulantes, mas também dos juízes, sobretudo Pedro de Lara e Aracy de Almeida.

Esta última foi para mim motivo de grande surpresa e encanto nos últimos anos, quando fui estudar a obra de Noel Rosa, sambista da década de 1930 que é um dos responsáveis pela forma da canção que se popularizou e tornou-se símbolo e síntese de nosso país. Eu conhecia a Aracy fanfarrona que falava os mais cômicos e desmedidos absurdos aos calouros. Pesquisando, descobri que aquela mulher engraçada havia sido uma das cantoras mais importantes da Era de Ouro do Rádio no Brasil, amiga e intérprete favorita de Noel Rosa. Foi graças aos discos lançados por Aracy, já nos anos 1950 (mais de uma década depois da morte precoce do Poeta da Vila), que Noel se consolidou como nosso compositor maior.

Caso parecido é o de Tony Tornado, atual jurado do programa "Popstar", da Rede Globo, que virou assunto nos últimos dias ao dizer à concorrente, em seu veredicto, que "para ela seria impossível cantar pior que o Chico Buarque", compositor da obra escolhida. Tony fez história como um dos pioneiros da soul music e do funk ao estilo James Brown no Brasil da década de 1970, e que depois se tornou ator recorrente em novelas e seriados, sobretudo em personagens que deveriam ser interpretados por atores negros (o capataz da Viúva Porcina, o Gregório Fortunato do Agosto de Getúlio). Lembro de ver uma entrevista de Tony há muitos anos na TV, e ficar impressionado com sua idade e vitalidade. Na época tinha 70; hoje, 89. Um negro nascido em 1930, menos de meio século após o fim da escravidão. Quem procura uma imagem antiga de Tony dançando no palco, entende o Tornado de sua figura. Sendo Tony um artista do espetáculo − um furacão no palco − é de se compreender que não se identifique com o gesto íntimo e mínimo do canto de Chico Buarque. Quando Tony Tornado se transforma em Tony Jurado, desqualificar o canto de Chico faz parte do show, do seu show.

O bom da polêmica foi abrir, bem ou mal, a discussão sobre o que é cantar, mal ou bem. Este debate, sobretudo no Brasil, deixa claro que no país de João Gilberto não cabem os critérios importados de programas como "The Voice" ou "American Idol", que associam o bom cantar ao virtuosismo, ao longo alcance de notas e durações, ao exibicionismo vocal. Por aqui, cantar bem é mais uma questão de afinação entre aquilo que se canta e o modo como se canta.

Um cantor ou cantora torna viva e nova uma canção a cada vez que é cantada. Seu gesto é teatral, daí a expressão "intérprete". Uma mesma canção pode levar a diferentes caminhos interpretativos. Penso, por exemplo, em "Como nossos pais", de Belchior, atingindo o máximo da dramaticidade no canto de Elis Regina, e o ápice da melancolia filosófica na voz de seu compositor (voz que, aliás, dificilmente passaria por um show de calouros).

Tim Maia e Roberto Carlos começaram a carreira juntos, no embrião do rock da década de 1960. O primeiro transformou-se no nosso grande nome da linhagem soul & funk na qual dançou o Tornado da BR-3; o segundo, tido como rei, é tão herdeiro de João Gilberto quanto Chico Buarque. Canta com a voz pequena, fiel à interpretação do que se diz, e é isto que o torna convincente quando adentra com intimidade em nosso ouvido: "detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes pra esquecer". Tão grandes que dispensam vozeirões.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 

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