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22/12/2019 às 08h30min - Atualizada em 22/12/2019 às 08h30min

A porta e a censura

ALEXANDRE HENRY
Já faz um bom tempo que acompanho as produções do pessoal do “Porta dos Fundos”, um grupo de humoristas que faz muito sucesso na internet e que já expandiu seus trabalhos para a TV e o cinema. Na semana passada, vi um especial de final de ano que eles fizeram em 2018 e que ganhou o ganhou o prêmio Emmy Internacional na categoria de "Melhor Comédia". Trata-se de uma parodia do filme “Se beber, não case” retratando como teria sido a última ceia de Jesus Cristo de um modo, digamos assim, bem diferente do que está no imaginário dos cristãos.

Depois de assistir ao especial de 2018, tive a certeza de que não demorariam a surgir pedidos de censura. Com o lançamento do novo episódio de 2019, em que, pelo que li (ainda não assisti), Jesus Cristo é retratado como tendo uma sexualidade não muito tradicional, aí é que era de se esperar o surgimento de muitos pedidos de retirada do programa do ar. Foi só eu pensar nisso e já recebi um e-mail convidando-me para assinar uma petição eletrônica que traz os seguintes dizeres: “Pela proibição da veiculação do filme de Natal do ‘Porta dos Fundos’, que tem como título ‘A primeira tentação de Cristo’. Pela remoção do filme do catálogo da Netflix e para que o Porta dos Fundos seja responsabilizado pelo crime de vilipêndio à fé. Também desejamos uma retratação pública, pois ofenderam gravemente os cristãos”.

Trata-se de um debate jurídico interessante, pois nossa Constituição Federal traz, no seu art. 5º, um rol de direitos e garantias fundamentais que pode gerar choques internos. O inciso IV diz que é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. O inciso IX vai na mesma linha e diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Por outro lado, o inciso VI diz que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Por fim, só para não ficar cansativo, convém transcrever o que diz o inciso V: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.

Assim, nós temos, de um lado, a liberdade de expressão e a vedação à censura. De outro, temos a liberdade religiosa e a proteção aos seus locais de culto e suas liturgias, além do direito – geral – de indenização por danos morais e à imagem. Juridicamente, pois, há argumentos tanto para se defender o direito do pessoal do “Porta dos Fundos”, relativo às suas criações humorísticas, quanto dos cristãos que se sentiram ofendidos em suas crenças. O que fazer então?

Eu vou me abster de um posicionamento jurídico sobre o tema, até porque, um dia, posso ter que decidir uma ação nesses moldes. Como cidadão, porém, longe dos debates jurídicos, eu tendo a questionar os riscos de se abrir uma porta para a censura, com o perdão do trocadilho. Hoje, somos uma nação majoritariamente cristã, mas que aceita e protege as diversas manifestações religiosas que não se apoiam nos dois testamentos bíblicos. Mas, e amanhã? E se tivermos uma guinada rumo a uma crença diferente, mais radical e intolerante, ou ao ateísmo? Como cristão que eu sou, batizado e crismado na Igreja Católica, eu posso ser perseguido e censurado em minha liberdade de religião. “Ah, mas isso não aconteceria nunca!” – alguém pode dizer. Não? Quantas nações não tiveram mudanças na predominância religiosa ao longo da história e, hoje, são países pouquíssimo tolerantes em relação à diversidade? Aliás, saindo dessa esfera de crenças, se eu sou a favor da restrição de determinado tipo de liberdade de expressão, o que impediria de, amanhã, essa tendência de censura se expandir para outras áreas, inclusive a do pensamento político? Hoje, domina a direita: que se silencie a esquerda. Amanhã, domina a esquerda: que se silencie a direita.

Em síntese, eu me preocupo com a abertura de cada porta, pois, como eu sempre digo, uma porta equivocadamente aberta para passar um bem intencionado pode, amanhã, servir de passagem para uma infinidade de mal intencionados. É por isso que, como cidadão e sem recorrer ao debate jurídico, receio quanto a qualquer tipo de censura. Hoje, ela pode favorecer minhas crenças. Amanhã, ela pode virar de lado e causar um prejuízo gigantesco às minhas liberdades, bastando que os ventos políticos e ideológicos mudem. Vale a pena correr esse risco?


*Esta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.











 
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