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15/11/2019 às 09h00min - Atualizada em 15/11/2019 às 09h00min

A voz do dono, o dono da voz

FÁBIO FIGUEIREDO CAMARGO | PROFESSOR ADJUNTO ILEEL/UFU

O espetáculo “Tuniê Abará”, apresentado no Circuito Independente de Teatro de Uberlândia (Citu) nos dias 9 e 10 de novembro, apresenta mitos da origem do Congado em Uberlândia. Com elenco praticamente de atores amadores, o espetáculo orienta-se por cenas que mesclam música de percussão tocada ao vivo com coreografias que encenam os diversos mitos de origem desde a vinda dos africanos da África, passando pela travessia do Oceano Atlântico e a chegada em terras brasileiras, assim como a difícil tarefa de viver em meio à escravidão nas minas de ouro.

São apresentados os mitos de Santa Efigênia, de São Benedito, de Nossa Senhora do Rosário, de Galanga, que será conhecido como Chico Rei, bem como a história do Capitão do Terno Pena Branca, Charqueada. A recuperação de mitos por parte do espetáculo é de fundamental importância em tempos de nacionalismo exacerbado, principalmente das histórias locais, em uma cidade que decide esquecer seu passado como Uberlândia, assim como é fundamental uma revisão da chegada dos africanos ao país e a difícil luta para afirmação de suas tradições religiosas.

A música, as danças, os adereços e figurinos retirados diretamente da tradição do Congado demonstram excelente aproveitamento de material ligado aos festejos de Nossa Senhora do Rosário, produzindo efeito coerente ao que se pretende encenar. Aos cantos advindos também da tradição se misturam alguns textos da literatura brasileira como o “Navio negreiro”, de Castro Alves, e “Martim cererê”, de Cassiano Ricardo, o que é bastante forçado e desnecessário, pois os mitos, por seu trabalho de elaboração oral já dariam conta da narrativa tranquilamente.

Na mistura produzida entre sons de atabaques, e instrumentos de percussão, de textos e corpos está a força do espetáculo que pretende ser uma peça e ao mesmo tempo uma apresentação em menor escala de Ternos de Congado, inclusive juntando integrantes de dois Ternos da cidade. Sendo um espetáculo que vem literalmente da rua para ocupar o teatro, apresentam-se algumas questões que impedem uma maior interação entre o que se encena e o espectador. A principal dessas incongruências está na utilização do áudio gravado ao invés de se deixar os atores representarem com suas próprias vozes dentro do teatro. A sensação é de que temos algo semelhante a uma dublagem de novela mexicana, mesmo sendo a voz dos atores, os quais se dublam a si mesmos, o que atrapalha enormemente seu desempenho. Dá a impressão de que as vozes se rebelaram contra os seus donos.

As cenas e coreografias estão em harmonia e são executadas com a leveza do que seja o Congado, sem o ensaio necessário e perfeito quase sempre daquilo que é visto em um palco tradicional. Essa imperfeição não é um problema para o espetáculo, pelo contrário, dá-lhe leveza diante de tamanho escopo e levantamento histórico, pois mesmo quem não conhece todos os temas históricos e míticos subjacentes consegue perceber do que se trata. A cena da reza dos padres em latim e em português com o contraponto dos africanos em suas línguas de origem é o ponto alto do espetáculo, demonstrando como foi difícil colocar em jogo sistemas culturais tão diversos como o africano e o português. Nesse sentido, o espetáculo é uma tradução muito elaborada da transplantação cultural ou da sincretização que vive esse sistema de códigos que é o Congado, o qual merece muito respeito e muita celebração em um mundo cada vez mais tecnológico e pouco afeito aos sentimentos e afetos ligados à nossa memória cultural.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.








 

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