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05/09/2019 às 08h22min - Atualizada em 05/09/2019 às 08h22min

Abandono

IVONE GOMES DE ASSIS

Que tempos são estes? Basta sair às ruas para que quase todas as nossas certezas se convertam em incertezas. Antigamente era comum ouvir falar em “educação que vem de berço”, mas, hoje, a educação parece vir da internet. Nunca vi tanta gente sem tempo para viver, como agora. Nunca vi tanta necessidade de se comprar coisas... Quanto mais tecnologia, menos tempo. Não sei se o tempo está mais curto porque temos mais trabalho, ou porque temos mais desperdício. Ouso apostar na segunda alternativa. Namoramos menos, porque desperdiçamos o tempo em cobranças infundadas. Rimos menos, porque desperdiçamos o tempo impondo condições. Mal conhecemos nossos filhos, nosso cônjuge, nossos pais... porque desperdiçamos o tempo buscando o perecível ou a novidade. Já não se tem tempo para olhar o outro e tecer-lhe um elogio, um abraço, um afago, porque o tempo está para aquele que oferecerá o silêncio, por mais que a necessidade seja o contrário. Admitir-se culpado parece ofensa, mas culpar parece normal.

Parece que estamos ocupados demais, até mesmo para sermos felizes. O mundo está depressivo... doente. As brincadeiras viram ofensas, diálogos viram processos, incompatibilidade de ideias viram assassinatos, o diálogo foi abandonado, dando lugar à mais desprezível intolerância.

Vou me amparar na poesia de Bertold Brecht, “Aos que virão depois de nós”, tradução de Manuel Bandeira, para ilustrar minha fala. Disse o poeta: “Realmente, vivemos tempos muito sombrios! / A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas / denota insensibilidade [...]. / Que tempos são estes, em que / é quase um delito / falar de coisas inocentes. / Pois implica silenciar tantos horrores! / Esse que cruza tranquilamente a rua / não poderá jamais ser encontrado / pelos amigos que precisam de ajuda? / É certo: ganho o meu pão ainda, / Mas acreditai-me: é pura casualidade. / Nada do que faço justifica / que eu possa comer até fartar-me. / Por enquanto as coisas me correm bem [...]. / E dizem-me: ‘Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!’ / Mas como posso comer e beber, / se ao faminto arrebato o que como, / se o copo de água falta ao sedento? / E, todavia, continuo comendo e bebendo. / Também gostaria de ser um sábio. / Os livros antigos nos falam da sabedoria: / é quedar-se afastado das lutas do mundo / e, sem temores, / deixar correr o breve tempo. Mas / evitar a violência, / retribuir o mal com o bem, / não satisfazer os desejos, antes esquecê-los / é o que chamam sabedoria.

E eu não posso fazê-lo. Realmente, / vivemos tempos sombrios. / Para as cidades vim em tempos de desordem, / quando reinava a fome. / Misturei-me aos homens em tempos turbulentos / e indignei-me com eles. / Assim passou o tempo [...]. / Do amor me ocupei descuidadamente / e não tive paciência com a Natureza. / Assim passou o tempo [...]. / Vós, que surgireis da maré / em que perecemos, / lembrai-vos também, / quando falardes das nossas fraquezas, / lembrai-vos dos tempos sombrios / de que pudestes escapar. / Íamos, com efeito, / mudando mais frequentemente de país / do que de sapatos, / através das lutas de classes, / desesperados, / quando havia só injustiça e nenhuma indignação. / E, contudo, sabemos / que também o ódio contra a baixeza / endurece a voz. Ah, os que quisemos / preparar terreno para a bondade / não pudemos ser bons. / Vós, porém, quando chegar o momento / em que o homem seja bom para o homem, / lembrai-vos de nós / com indulgência”.

Amar não dói. Viver é sabedoria. Ser feliz é vida. Mas a vida tem sido, na maior parte, puro abandono. Afinal, que tempos são estes?

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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