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22/08/2019 às 08h28min - Atualizada em 22/08/2019 às 08h28min

Sapato velho

IVONE GOMES DE ASSIS

Sapato velho, ah, quantos não foram até aqui os artistas que fizeram uso da figura dos sapatos velhos para descrever seus pensamentos? A literatura, a pintura, a música, a psicologia... todas trazem seu olhar sobre este objeto. Enquanto a Cinderela busca um sapatinho de cristal e “O mágico de OZ” apresenta um sapato de prata, Vincent Van Gogh pinta velhos sapatos de camponeses, que se eternizam por aí nos mais célebres estudos e exposições.

Heidegger, em “A origem da obra de arte”, deixa a utilidade do objeto, para enxergar a arte de Van Gogh. Desse modo, enquanto os sapatos velhos vão se esvaindo dos armários, a pintura de Van Gogh vai incrustando-os na imortalidade da Arte. É um desvelar mágico, natural, do existir. Naquela arte os velhos sapatos exibem sua dimensão de mundo, sua importância. É um enxergar além do feio.

Dentre os distintos literatos, que “elogiaram” da sombra à preguiça, da loucura à serenidade, temos Lima Barreto, que achou de “elogiar” o feio, por intermédio da apaixonada e burlesca “Apologética do feio”, ou “Teoria do feio”, que é um “Bilhete à Baronesa de Melrosado: “Vossa excelência é capaz de apontar uma definição, um traço; uma característica em suma que possa servir de base a uma ‘Teoria positiva do Feio’? Não o é, eu aposto; e não o é por dois motivos: 1º, porque o Feio é indefinível. 2º, porque o Feio é pessoal; depende de uma série de circunstâncias a que não são estranhos, o ponto de vista, o lugar geográfico, a influência do meio e até o momento histórico. [...] Vê, pois, vossa excelência que se pode ser feio, sendo-se homem de espírito, de ação e entendimento. [...] Vossa excelência foi cruel. Vossa excelência procurando ferir-me lançou uma mão cheia de cinza e fel sobre veneráveis carcaças...”.

Enquanto o sapato velho é feio para uns, é tesouro para outros. O sapato novo, seja de cristal, de prata, de ouro... se apresenta vazio, apenas com as expectativas, o sapato velho vem cheio de memórias, vivências, batalhas, sonhos, verdades... imprimindo seu papel, seu esforço, sua resiliência e não somente sua probabilidade. Embora os sapatos de camponês, de Van Gogh, não denunciem o espaço a que possam pertencer, nem sequer um torrão de terra para anunciar o campo que tenha pisado, o seu couro carcomido, seu formato moldado aos pés, se encarregam de certificá-los do dever cumprido, porque suam o cansaço do pisar do trabalhador.

É na solidão dos passos do trabalhador que o sapato se faz presente, apertando os dedos, doendo a sola do pé, mas anunciando que está fazendo o possível ao seu alcance, para proteger seu senhor. Os sapatos velhos carregam a ansiedade em se notar útil, e no seu silêncio, vivendo a certeza de morte e/ou abandono, acaricia os pés que os calçam. É um pisar com cumplicidade.

A goiana Cora Coralina poetizou “Não há nada que dure mais do que um sapato velho jogado fora. Fica sempre carcomido, ressecado, embodocado, saliente por cima dos monturos. Quanto tempo! Que de chuva, que de sol, que de esforço, constante, invisível, material, atuante, silencioso, dia e noite, precisará de um calçado, no lixo, para se decompor absolutamente, se desintegrar quimicamente em transformações de humo criador?...” Pensando neste poema, podemos entender o sapatovelho como sendo a força da resistência. As lembranças que não se apagam.

E como não mencionar a composição de Mú Carvalho, Cláudio Nucci e o Paulinho Tapajós: "Sapato Velho", canção que explodiu na carreira de Roupa Nova (1981)? Sua letra diz: “É! Talvez eu seja / Simplesmente / Como um sapato velho / Mas ainda sirvo / Se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio / Dos seus pés”.

No inseparável “pé esquerdo e pé direito”, feio e bonito não são páreos para conforto e desejo. Afinal, disse o jurista inglês John Selden: “Os velhos amigos são os melhores”, referindo-se à fala do rei James ao se referir aos seus velhos sapatos.

Há quem prefira ser a utopia do sapato novo, mas bom é ser o afago do sapato velho.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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