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13/08/2019 às 07h58min - Atualizada em 13/08/2019 às 07h58min

Histórias de uma pesquisa

ANA MARIA COELHO CARVALHO

Quando uma pesquisa científica é realizada, publica-se como ela foi executada, quais os resultados, os dados, a análise, as conclusões, a importância para a ciência etc. Tudo bem certinho, dentro de uma linguagem técnica e preocupação com a objetividade e a clareza.  Acontece que, por trás, há muitas histórias a serem contadas e que talvez resultassem em um livro bem mais interessante que o trabalho publicado. No meu caso, por exemplo, só o primeiro dia de coleta no campo já daria duas páginas do livro.

Cursei o mestrado na USP de Ribeirão Preto e escrevi uma dissertação sobre as interações entre abelhas e plantas no cerrado. O trabalho de campo foi realizado na Estação Ecológica do Panga, pertencente à UFU, a cerca de 30 km do centro da cidade. No primeiro dia de coleta, lá fui eu com mais três heroicos alunos. Saímos às 5h30, em um carrinho velho, um Fiat 147, que comprei especialmente para o trabalho de campo. Levamos quatro redes entomológicas, éter, algodão, frascos para acondicionar as abelhas, etiquetas de metal enumeradas para marcar as plantas, sacos de plásticos para transportar galhos das plantas para identificação, cordões e estacas para delimitar a área de coleta, termômetro, caderno de campo. Água e sanduíches. Tudo preparado para um dia de coleta, no sol ou na chuva. Chegando na reserva, caminhamos 40 minutos no cerradão, até chegar na área a ser demarcada. E aí ficamos, olhando para baixo e para cima, caminhando dois a dois, sol no rosto e implorando para encontrar plantas floridas com abelhas coletando pólen ou néctar. Quando aparecia uma, ainda escapava. Olhando pra cima, caí em um buraco de tatu. O aluno trombou em um ninho de vespas. A aluna levou uma ferroada. A água acabou. Meu tênis rasgou. Todos arrastando as pernas, depois de 10 horas de coleta. E ainda ficamos pretinhos do carvão das árvores, pois algumas foram queimadas em um incêndio anterior.

Enfim, chegou a hora de voltarmos. Carreguei as abelhas coletadas como um tesouro. Sentamos no carro, que maravilha! Mas ele não dava partida. Empurra daqui, empurra dali, e nada! Abandonamos o carro no meio do mato e fomos pedir carona na estrada de terra deserta, os quatro com os cabelos desgrenhados, sedentos, sujos de carvão, cansados e esfomeados. Passou um caminhão carregado de sacos de arroz e nos socorreu. Os dois alunos foram na carroceria deitados em cima dos sacos, tentando se equilibrarem. A aluna e eu, na boleia entre os dois motoristas gente boa. A 30 km por hora na estrada esburacada, levamos uma hora para chegar na cidade e descemos na Av. Getúlio Vargas. Carregando duas mochilas, suja e cabelos ao vento, pedi um telefone emprestado em um restaurante, para pedir socorro em casa (na época, não existia telefone celular). O dono não emprestou, penso que devido à minha aparência (aliás, tenho certeza). Queria pegar um táxi, mas não tinha dinheiro. Contei então minha história toda para um taxista, que felizmente acreditou e me levou. Dentro do táxi, depois de me olhar bem, ele falou: "Puxa, e ainda dizem que professor da UFU não trabalha..."

O pior foi quando, às 21h, cheguei em casa: não tinha ninguém e eu não tinha chave. Sentei-me no passeio e chorei, chorei copiosamente. E ainda teria que arrumar um mecânico no dia seguinte pra buscar o traste do Fiat... Jurei que nunca mais voltaria para as coletas de campo.

Mas ainda bem que a gente esquece e continuei a pesquisa. Um ano de coletas quinzenais no campo resultou na identificação de 128 espécies de abelhas visitantes de flores do cerrado e na descrição de comportamentos interessantes na relação planta-abelha. E ainda sobrevivi ao doutorado, fazendo coletas em outros locais.

Pesquisa é assim mesmo, um passo de cada vez. Mas capaz de levar o homem, da caverna até a conquista da lua e do espaço interplanetário.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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