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06/08/2019 às 08h03min - Atualizada em 06/08/2019 às 08h03min

Uma noite em Cachoeira do Manteiga

ANA MARIA COELHO CARVALHO

A poesia "Cidadezinha qualquer", de Carlos Drummond de Andrade, é bem simples, mas expressa com ternura e um pouco de ironia, o que é uma cidade pequena:
 

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
 
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
 
Devagar... as janelas olham.
 
Êta vida besta, meu Deus!

 
Não tem como ler essa poesia e não pensar em Cachoeira do Manteiga, um povoado na beira do São Francisco, a quatro km da nossa fazenda. Tudo lá é devagar, ninguém tem pressa e todos se conhecem. Todas as pessoas são bem moreninhas. Só tem uma rua asfaltada, o restante é de terra empoeirada. No centro, uma igrejinha singela e uma praça, onde as pessoas ficam sentadas nos bancos esperando o tempo passar e a meninada brinca nos aparelhos de fazer ginástica. E uma quadra coberta, onde tudo acontece: as peladas, as formaturas, a festa junina, os treinos de futebol. O técnico é o Bill, um ceguinho que anda por todo lado com um guia. Não sei como, ele apita as faltas direitinho, eu vi. Tem também o Clube Náutico, onde ficam guardados muitos barcos de pescadores que vêm de longe pescar no São Francisco, mas os peixes sumiram. E a padaria, que fica aberta só até o pãozinho de sal acabar. A escola, a creche, um ou dois barzinhos que vendem pinga, cerveja e salgadinhos.

Nesse cenário, fomos curtir a noite do último Corpus Christi, em junho. O Zé, eu, minha filha com o marido e os três filhos. Haveria missa na igrejinha, com o padre que veio de fora. Depois, a procissão, passando pelas ruas de chão batido que foi decorado com desenhos caprichados feitos de serragem, folhas e materiais coloridos. A igrejinha estava lotada e teria o batizado de um menininho de uns quatro anos, o Vinícius. O Zé, eu e os netos fomos andando pelo corredor, procurando lugar pra sentar. Só tinha no primeiro banco e lá ficamos. Acontece que era o lugar dos coroinhas e cantores e ninguém teve coragem de falar, pois o Zé é fazendeiro conhecido na região. E daí a missa não acabava. Uma moça leu um salmo enorme, ia passando folhas e folhas. Tão grande que o Vinícius dormiu de boca aberta e dois netos, pesados, foram caindo em cima de mim, de sono. Mesmo catequista, não tive outra saída e disse para o Zé que ia sair. Ele ficou indignado, disse que ficaria até o fim (claro, era conhecido e estava no primeiro banco, não era por fé não). Saímos e ele ficou. Fomos comer coxinhas e pastéis no bar da esquina, uma delícia.

Mas a noite estava agitada na Cachoeira. Havia cinco carros de polícia correndo pra lá e pra cá. O normal é apenas um, quando tem. Requisitaram reforço policial porque um baderneiro estava dando cavalo de pau e estragando os desenhos de serragem que o povo tinha feito nas ruas. Quando o único policial foi prendê-lo, resistiu à prisão e fugiu. Daí veio o reforço. Não conseguiram prendê-lo, mas como o irmão também estava aprontando, levaram o irmão dele e a esposa ficou em prantos (tudo isso nos contaram enquanto comíamos coxinhas e os carros corriam por ali). Brinquei com o meu neto de seis anos, o Moisés, que tem muito medo de polícia. Disse-lhe pra ficar esperto, pois se o Yuri (o irmão dele) aprontar, ele é quem vai preso. Respondeu-me que isso é injusto e que ia sair correndo.

Nisso, passou a procissão. E o Zé, todo concentrado, com a velinha acesa na mão. Não viu nada, não sabia de nada, deve ter rezado muito...Nos juntamos a ele e fomos rezando e cantando, passando pelos desenhos, alguns estragados pelo vândalo fujão. 
Voltamos pra fazenda pra dormir em paz. De repente, olhei no espelho e vi que estava sem a correntinha de ouro e o pingente que sempre uso. Num lampejo, lembrei-me que a tirei do pescoço para desembaraçar e a deixei em cima da mesa do bar. O genro se ofereceu pra voltar lá. Foi com o Yuri, de 10 anos. Voltaram sem ela. Mas o neto, que tinha ficado escondido dentro do carro, com medo dos vários homens que estavam no bar, disse que viu um moço de boné vermelho com a correntinha enrolada no braço e que ele a escondeu. Valente e enfezada, peguei o carro e voltei pra Cachoeira com o Yuri. Ele, escondido, mostrou-me o moço. Puxei uma cadeira e sentei-me diante dele (tipo estes filmes de faroeste). Olhei-o bem nos olhos e disse-lhe que tinha esquecido a minha correntinha em cima da mesa. Perguntei-lhe se ele não a tinha encontrado. Enrolou um pouco e disse que ia me ajudar a procurar. E no mesmo instante a encontrou caída no meio da terra. Assim a recuperei.

Pois é, Carlos Drummond, mesmo nas cidadezinhas com bananeiras e laranjeiras e onde a vida passa devagar, muitas coisas acontecem.

*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.

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