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21/05/2019 às 08h25min - Atualizada em 21/05/2019 às 08h25min

Greve concreta

ENZO BANZO
Na última semana, em meio ao coro das manifestações contrárias ao absurdo ataque contra a educação pelo malfadado governo mal-educado, chamou-me a atenção uma voz silenciosa e potente, replicada em muitos dos perfis que acompanho: o poema “GREVE”, de Augusto de Campos, publicado em seu perfil no instagram, que carrega a instigante alcunha @poetamenos.  Minha empatia com a obra se deu não só pela identificação com o que é dito − e da forma como é dito −, mas por se tratar da viralização de um poema daquele que considero o maior poeta vivo em nosso país.

Augusto de Campos, hoje com 88 anos, foi uma das cabeças motoras da trinca que deflagrou a Poesia Concreta, na década de 1950. Era um período em que o Brasil parecia assumir um rumo de modernização democrática progressista no melhor sentido: nasciam a Brasília de Niemeyer, a Bossa Nova de João Gilberto. Quando veio o golpe militar de 1964, Augusto já era um artista estabelecido. Em 1968, entendeu a Tropicália antes de Caetano Veloso: foi ele quem apresentou ao compositor baiano a Antropofagia de Oswald de Andrade, e sua relação com o Tropicalismo. Fico imaginando o cansaço e a desilusão deste homem inteligentíssimo de quase 90 anos, ao ver o barco voltando de novo pra trás, retrocedendo e afundando. Mas Augusto de Campos, propagador da revolução pela forma há mais de meio século, segue o preceito concretista de "manter o arco sempre teso".

O artista está a pouco mais de um ano alimentando seu perfil no Instagram, rede social fundada mais no ícone imagético que no discurso linear verbal, ambiente portanto propício para a introdução de suas construções gráfico-poético-sonoras (ou verbivocovisuais, para usar o termo dos concretos). Se há nessa comunicação icônica um ponto em comum entre o concretismo e a rede social, por outro lado, diante de uma postagem do @poetamenos, não dá para simplesmente dar uma olhadinha subindo o feed: é necessária uma apreciação atenta, longa, profunda. Ali não está uma imagem instantânea, produzida e publicada simultaneamente, e sim um trabalho minucioso de um poeta de máximo rigor. E, ao contrário do que se vê na maior parte da produção de Augusto, aqui o viés é sobretudo político, apresentando o inconformismo do autor com a "democracia meia bota no Brasil", como ele mesmo disse em uma entrevista. Estas produções que conjugam poesia e política de forma explícita são por ele denominadas "contrapoemas".

No contrapoema “GREVE” (para ver, acesse o perfil), a palavra-título está grafada em vermelho, sobre fundo preto, repetida em quatro colunas de dez palavras cada. Ou seja, a palavra GREVE (assim, em caixa alta) está escrita 40 vezes. Sobre as colunas de repetições do vocábulo, há um conjunto de cinco versos curtos, escritos em letra minúscula, com fonte branca: "arte longa vida breve / escravo se não escreve / escreve só não descreve / grita grifa grafa grava / uma única palavra". E lemos, passando para o plano do fundo: GREVE GREVE GREVE GREVE... O texto conclama, desta forma, a mobilização coletiva diante da pauta urgente, sintetizando a associação entre arte, educação e liberdade, esta última implícita em oposição à figura do escravo, a quem não é dado o direito da escrita-educação.

Mas, ao mesmo tempo, em uma leitura não-linear, enquanto nos atemos aos cinco versos da camada superior, a palavra GREVE ecoa incessantemente, como se uma multidão de vozes a repetisse, evocando o que se vê nas ruas. Cria-se uma polifonia, uma representação poético-visual das muitas vozes em coro com faixas levantadas, nos imensos blocos das manifestações. Tal efeito jamais seria conseguido com a simples escrita dos versos, ou, ainda mais distante, com a apresentação lógica e discursiva destas ideias. Este é um ponto que só a arte (longa) alcança nessa vida (breve).
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