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19/05/2019 às 08h00min - Atualizada em 19/05/2019 às 08h00min

Civilizemos o Brasil

ALEXANDRE HENRY | JUIZ FEDERAL E ESCRITOR
O que aconteceu com meu amigo foi algo, infelizmente, rotineiro no Brasil – pense aí se você já não presenciou algo similar. Vinha ele por uma rua quando, de repente, deparou-se com uma camionete andando a 10 km/h, enquanto seu condutor apreciava as vitrines das lojas. Meu amigo, claro, não aguentou aquilo e ultrapassou a camionete. “Oh, que afronta!” – certamente pensou o sujeito ultrapassado e diminuído em sua virilidade. Decidido a recuperar seu status de “eu sou o rei da rua” a qualquer custo, o valentão saiu em disparada atrás do carro do meu amigo, até conseguir, em certo momento, emparelhar com ele. Atirou então seus mísseis xingatórios a plena potência, enquanto meu amigo tentava levantar um escudo da indiferença para se defender daquela agressão sem sentido.

“Oh, que afronta! Além de me ultrapassar, ainda não dá bola para meus palavrões?” – foi o pensamento seguinte. Como não havia um revólver disponível ali para o pobre cidadão de bem se defender daquela humilhação, ele simplesmente ultrapassou meu amigo e meteu o pé no freio, provocando uma batida que arrebentou a frente do sedan e quase nem arranhou a camionete. Pior: ainda desceu do veículo dizendo que quem bate atrás está errado. O olhar jurídico do meu amigo, claro, correu em busca de câmeras de vigilância na vizinhança e logo encontrou uma. Diante da prova irrefutável de que tinha feito besteira, o sujeito decidiu que seu seguro iria cobrir o estrago.

Não, eu não vou falar de armas. O exemplo seria perfeito, não é mesmo? Todavia, essa longa introdução é só para alertar de um problema que não aconteceu nesse caso, mas poderia ter acontecido. Falo da proteção que as leis brasileiras dão a quem é devedor. O que isso tem a ver com uma batida de carro? Explico.

No Brasil, os salários não podem ser penhorados para pagar dívidas. Duas exceções: a) se for para pagar pensão alimentícia; b) os valores acima de cinquenta salários-mínimos recebidos como salário. A casa de moradia, conhecida como bem de família, também não pode ser penhorada. A intenção até que é nobre, permitindo que o cidadão não fique sem o mínimo existencial. Os resultados, porém, são horríveis. Para o mundo empresarial, essas restrições são ruins, mas o mercado deu um jeito de contornar o problema com dois mecanismos bem simples. Primeiro, criaram os cadastros de inadimplentes, como SPC e SERASA, para que o mau pagador desse o cano só uma vez. Segundo, conseguiram mudar a legislação permitindo que empréstimos consignados pudessem morder parte dos salários.

Mas, e o sedan do meu amigo? Ele deu sorte do “cidadão de bem” ter gastado o dinheiro com seguro ao invés de ter comprado um revólver. Se o sujeito, porém, não tivesse seguro e nenhum outro bem penhorável em seu nome, e se o estrago tivesse sido tão grande que nem mesmo vendendo a camionete o prejuízo pudesse ser reparado, meu amigo iria ficar a ver navios. Mesmo que o maluco tivesse um salário mensal de R$ 40 mil, nem ao menos um centavo poderia ser tirado para pagar o conserto. Essa proteção sem sentido no Brasil, que não diferencia uma dívida pela compra de um produto de uma dívida proveniente de um ato ilícito, é um dos maiores incentivos dados aos brasileiros para continuar em um patamar muito baixo de civilidade, para continuar vivendo sem se preocupar se seus atos podem causar prejuízo a alguém. Por que eu vou me preocupar se tudo o que eu tenho é meu bom salário e a casa em que moro? Eu posso cometer um monte de bobagens, posso causar prejuízo ao meu vizinho ou ao cara que me ultrapassou, que meu salário e minha casa vão continuar protegidos.

O Brasil precisa mudar nesse ponto. Se há uma visão paternalista que tenta proteger o consumidor das “garras” do mercado, blindando seu salário e sua casa das execuções de dívidas, então que pelo menos essa blindagem seja extinta para aquelas dívidas provenientes de atos ilícitos. O sujeito que não se preocupa em ser atento e diligente ao dirigir ou em qualquer outra situação que coloque o patrimônio alheio em risco, o sujeito que comete uma agressão gratuita, seja física ou verbal, esse não pode receber nenhuma proteção patrimonial, sob pena de estimularmos comportamentos irresponsáveis. Passou da hora de civilizarmos o Brasil e o caminho mais fácil para isso é mexer com o bolso dos que ainda não respeitam o outro. Mudemos, pois, a legislação, permitindo penhora de salário e de qualquer bem de quem foi condenado a pagar uma dívida por ter cometido uma infração à lei, seja ela cível ou criminal.
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