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16/05/2019 às 10h08min - Atualizada em 16/05/2019 às 10h08min

Os abutres têm fome!

IVONE GOMES DE ASSIS
Nesta semana deparei-me com certo desassossego. A todo instante um noticiário apresenta um acusado recebendo benefícios para cooperar com a justiça. Isso não é obrigação do réu? Agora, um jovem vigilante atirou, por motivo vil, em um idoso indefeso, na mesma agência bancária em que, há pouco tempo, um senhor foi assassinado por tentar explicar que usava marca-passo. Não bastasse isso, foi uma repercussão infinita nos noticiários e redes sociais, com o “vídeo ao vivo, na hora da queda”. Que anseio descabido é este em apresentar o trágico?

Tomei emprestada, do cinema, a frase que intitula minha escrita de hoje: “Os abutres têm fome”. Esse é um filme de faroeste, antigo, que nos apresenta uma leitura interessante sobre as duas situações, de um lado a exibição da violência, do outro a impunidade e a atual “delação premiada”. No filme, enquanto uma falsa freira e seu suposto herói saboreiam uma cascavel assada, ele vai arrancando informações da mulher, sobre uma guarnição francesa, que guarda o tesouro que ele ambiciona roubar.

Em suas filosofias de pensamento, para ela, fingir-se freira era condição indispensável para sobrevivência; para o mocinho, ex-homem da lei, como ele mesmo responde, ao ser questionado se é ou não simpatizante da causa de certo grupo: “Nem deles, nem de ninguém [...]. Agora, o que me interessa é o dinheiro”.

Esta cena me levou direto ao livro “Os abutres têm fome”, do jornalista e cinéfilo Márcio Alvarenga (2014). Com a leitura desta obra, conforme escreveu Roberto Romano (2014, p. 14-15), temos condição “de unir os sentidos, as artes, a vida humana em seus lados belos e horrendos”. Pois “conduz o pensamento para o cume da vida intelectual”, sem deixá-lo a ermo “na torre de marfim universitária”.

Alvarenga aponta para um cenário crítico e epidêmico que é diluído no cotidiano brasileiro por meio de excessos midiáticos, que “aprofunda o quanto pode o espectador do próprio mundo, mexendo com o lado psicológico de quem está assistindo” (p. 17-18).

Como escreveu o próprio Márcio Alvarenga (p. 19), “a violência mostrada na televisão afeta, principalmente [mas não apenas] as crianças”, elas “costumam imitar tudo aquilo que veem”.

Manuel Castells, em “O poder da identidade” (A era da informação..., 2008), apresenta as transformações e a influência ofertadas pelos meios de informação sobre a predominância: “[...] a mídia eletrônica [rádio, televisão, jornal, internet...] passou a se tornar o espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas. Contudo, sem a mídia, não há meios de adquirir ou exercer poder. Portanto, todos [partidos de ideologias em geral] acabam entrando no mesmo jogo, embora não da mesma forma ou com o mesmo propósito”.
Por desrazões diversas, a política humana tem, muitas vezes, se oposto à conduta ética. “Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo. Se os homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles internos e externos do governo. Ao constituir-se um governo (...), a grande dificuldade está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo. (...) Essa política de jogar com interesses opostos e rivais (...) pode ser identificada ao longo de todo o sistema das relações humanas, tanto públicas como privadas (Madison apud Weffort, 1990, p. 273).

É fato que a função da mídia em geral (oficial ou oficiosa) é noticiar de forma transparente, mas cabe consciência na forma. Dá medo digitar certos nomes para o Google. Diferente da televisão, que exibe e cessa, a Internet mostra e arquiva, para livre acesso futuro. Os conflitos sociais de toda ordem são viabilizados na democracia. A questão é que no afã para alcançar a fama, noticiários e portadores de celulares apinham-se em situações de arame farpado no desespero por ser o primeiro, deixando a dor alheia em segundo plano, porque “os abutres têm fome”!



*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia.
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