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05/05/2019 às 08h01min - Atualizada em 05/05/2019 às 08h01min

Uma manhã de fúria

ALEXANDRE HENRY | JUIZ FEDERAL E ESCRITOR

Quando acordei, o sol ainda estava nascendo. Decidi então aproveitar aquele comecinho de dia para fazer um exame de sangue que estava pendente e que necessitava de jejum. Detalhe: sou daqueles que acorda e quer logo tomar café da manhã, ficando de mau humor se o jejum dura mais do que meia-hora. Pois bem, peguei o carro e fui ao laboratório na maior boa vontade, com o espírito preparado para aguentar um chá de cadeira.

E que chá! Foram quarenta minutos entre a minha chegada e o atendimento da moça que iria fazer a parte burocrática. “Por gentileza, coloque o seu dedo aí” – ela me pediu, indicando o aparelho que colhia impressões digitais para confirmar que eu era eu mesmo. Coloquei o dedo indicador. Nada. Coloquei o dedo médio. Nada. Repeti o indicador, repeti o médio e já comecei a ficar nervoso por conta daquilo. E a fome? Já tinha mais de uma hora que eu acordara e, para os meus padrões, aquilo era como fazer um jejum de duas semanas no deserto. A atendente deu um jeito de digitar o número da carteirinha sem minha digital e disse então o que eu não esperava ouvir: “Não tem nenhum pedido de exame seu no sistema do seu convênio”. Subi então mais um degrau na escada do nervosismo. “Como não, moça?” – perguntei. Ela me mostrou a tela do computador. Aí, por sorte, eu tinha recebido uma mensagem da secretária do médico me mandando o código de autorização. Dei um jeito de achar a mensagem e quase enfiei o celular no rosto da moça: “Olha aqui!”.

Ela olhou. E também digitou o código no sistema do convênio, dizendo então a segunda frase que eu não esperava e nem queria ouvir naquele dia: “Os exames não foram autorizados pelo seu convênio”. Pronto! Agora eram trezentos degraus na escada das emoções negativas que eu tinha subido, passando pelo andar do nervosismo, da raiva, superando até o andar do ódio para chegar ao patamar do “quero torcer o pescoço de alguém e isso não é uma figura de linguagem”! Saí dali cuspindo marimbondo, como diziam os antigos, e caminhei os duzentos metros que me separavam da sede do convênio médico recolhendo da memória um arsenal de palavrões para despejar em alguém por lá. Meu olhar de fúria para a senhora que distribuía senhas já dava a dica para ela que eu era daqueles clientes que criam problemas e que precisam ser despachados logo. Nem bem sentei e uma mocinha de pele alva me atendeu, ficando com a pele ainda mais alva quando percebeu o meu grau de nervosismo. Disse logo de cara: “Moça, eu estou com ódio, mas com muito ódio mesmo! Eu pago mais de R$ 1.200,00 por mês nesse convênio e tenho que passar por um problema desses!”. Diante dos dedos ágeis da atendente no teclado, que conseguiam se mover rapidamente mesmo com a tremura dela diante da minha figura nada simpática à sua frente, eu decidi que não iria proferir nenhum palavrão e nem xingar ninguém, ao menos por alguns minutos. “Eu quero saber o nome da pessoa que negou essa autorização” – foi o que consegui falar.

Então, como dizia a música, “meu mundo caiu”! “Senhor, consta aqui que não foi feito o pagamento do mês passado. O deste mês consta em dia, mas o do mês passado está em aberto” – ela me disse, usando uma voz em formato de bigorna no pescoço de um náufrago. Enquanto eu me afundava na cadeira, procurava furiosamente no meu extrato bancário, na tela do celular, aquele pagamento. “Como assim?” – pensei. “Eu sou a pessoa mais organizada do mundo, anoto tudo o que compro e pago, programo minhas contas com antecedência e nunca tive o nome no SPC ou no SERASA em toda a minha vida” – continuei refletindo, enquanto o danado do recibo de pagamento teimava em não aparecer nos extratos de nenhuma das minhas contas.

Porém, não teve como fugir da realidade: eu tinha me esquecido e, na cegueira causada provavelmente pelo estômago vazio e pela longa espera no laboratório, quis quebrar o mundo e quem estivesse à minha frente por conta de uma falha que havia sido minha mesmo. No final das contas, consegui pagar ali naquela hora o boleto em atraso, voltei ao laboratório e, dando graças a Deus pelo exame de sangue não ser aquele de cortisol, enfim colhi a amostra e pude ir para casa, onde tomei meu café da manhã sem conseguir esvaziar o peso na consciência.

Há uma frase que diz: nunca prometa nada na euforia, nunca responda nada na raiva. Lembrei-me dela naquele dia e também acabei criando outra: nunca deixe crescer seu desejo de esganar alguém antes de verificar se o que te faz sentir ódio não é decorrente de sua própria culpa.

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