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28/04/2019 às 11h30min - Atualizada em 28/04/2019 às 11h30min

Alma liberta

WILLIAM H STUTZ
De Ouro Preto - Já se vão quase vinte dias longe de casa. Da quente Fortaleza para a alegre, confusa e desorganizada Belo Horizonte, chegamos à chuvosa e fria Ouro Preto. Da varanda de onde escrevo vejo as costas da Igreja do Rosário, entre ciprestes e trepadeiras desalinhadas.

A casa é grande/pequena. Só ocupamos a parte de baixo. Quase tudo por esses lados em tempos de chuva cheira a mofo, a umidade é altíssima e as roupas custam a secar. O frio chega aos ossos. Talvez incomode até mais do que o ranço do mofo. Dormir não se faz fácil. Daqui ouço o córrego do Caquende em delicioso passar. Pena que seja poluído. O poder público, com poucas exceções, não cumpre o seu dever e nem a lei de tratar rejeitos antes de atirá-los aos cursos d’água.

A cidade em si é linda e às vezes dá vontade de não sair mais daqui e encontrar um “Bom-Será” miudinho, só nosso, sem olhos a vigiar presença. Explico : “Bom-será é um estilo de construção civil típica das Minas Gerais, em especial das cidades do Ciclo do Ouro (Ouro Preto, Mariana, Sabará, Itabirito, Caeté).”

Ando estranho, por mais que tentem me fazer em casa sentir. Andamos a pensar sério nisso. Aos poucos vamos espaçando permanência. Um pouco cá, um pouco lá. Lá, está o amado cerrado. Minha Uberlândia, onde em qualquer canto me sinto na sala de casa.

Chego à conclusão de que tirarem minha paixão de trabalhar com meus bichos foi, afinal, uma benção, uma carta de alforria para a vida. Passei raiva, senti tristeza, sofri assédio moral e intelectual do mais alto nível. Resiliente fui e sempre serei. Aprendi muito com esse período. Cito trecho do famoso poema No Caminho com Maiakóvski, de Eduardo Alves da Costa:

“Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada/ Na segunda noite já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. / Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz, e já não podemos dizer nada.”

Grande lição de vida. Quando nos sentimos úteis e felizes atentamos contra a tristeza, a inveja e, principalmente, contra a falsidade de quem mais confiávamos. Há o lado bom. Os grilhões do compromisso como troca estão rompidos. Nada devo a ninguém.

Assisto ao pôr-do-sol de aquarela da janela de uma linda exposição de fotografias. Descemos a Rua da Escadinha até a Matriz Nossa Senhora do Pilar, onde ouvimos um belíssimo concerto de violoncelo. A música brinca, passeia entre Madonas e Gárgulas secas, que jamais viram gotas de chuva como suas irmãs, observadoras das ruas, das luzes e da lua. O ouro em fartura única parece brilhar mais e mais, iluminado pelas peças saídas de belos instrumentos.

A cultura pulsa nas ruas. Ouro Preto se transforma em imenso palco, onde tudo de belo pode acontecer Um alento para um coração cansado, agora repleto de boa energia. A lua quase cheia aparece linda. Amanhã será um dia de sol e céu de azul perfeito. Assim foi. Acordamos com o latido dos cães, guardiães fiéis do casario. Pareciam pedir que saíssemos da cama quente para ver o lindo dia anunciado. Meio de abril e tanta chuva, brindamos a beleza do sol.

Já não sinto tristeza alguma. Em breve voltaremos para nossa Uberlândia, para temporada. Pé cá, pé lá, essa será nossa vida. Muitas viagens e esquecendo tanto mal, talvez algum dia possamos em simplicidade viver sonhada paz, de corpo e espírito. Um “Bom Será” com flores na janela, porta e janelas sempre abertas a receber gente do bem. Aí sabermos onde a “falsidade não vigora".
 
 
 
 
 
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