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25/04/2019 às 09h08min - Atualizada em 25/04/2019 às 09h08min

Mera poesia

IVONE GOMES DE ASSIS
É inacreditável que em pleno século XXI, início do 3º milênio, ainda haja tantos países, pessoas, mentes... necessitando de carta de alforria. Observando as pessoas nas ruas, notamos que muitos são excluídos da comunhão política e social; do direito de ser chamado de semelhante, seja na soberania nacional ou na comunidade.

Em minha vida escolar, aprendi sobre a escravidão imposta aos cidadãos vindos da África. O saber me fez enxergar também a escravidão para com os índios, os imigrantes italianos, os garimpeiros, os seringueiros... e outros tantos. Depois, os jornais se encarregaram de me atualizar, inserindo o fator escravismo sobre trabalhadores comuns, no urbano e no rural. Já não eram os saberes que vinham dos livros de história, mas, sim, de vivências que, posteriormente, irão compor os livros.

No discurso de Heráclito, em “Os pensadores pré-socráticos” (D 53) encontramos que “A justiça não significa apaziguamento: pelo contrário, ‘o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns, homens livres’. O conflito sacode poeira e monstros que habitam os casacos capitalistas, socialistas... mas a decisão é individual. Cada um escolhe seu próprio voo.

É comum nos depararmos com o noticiário sobre o trabalho escravo. Agora, então, com o conflito da Venezuela, isso ganhou força. Nesta semana, vários jornais, trouxeram o caso à superfície: “Venezuelanos em situação análoga ao trabalho escravo são resgatados no sul da BA (G1 BA, 18/04/2019, 13h06); “Polícia Federal resgata 10 venezuelanos fazendo trabalho escravo em oficina na BR-415” (G1). Joe Ramos, um dos resgatados pela PF, diz ao jornalista Raphael, arrastando seu sotaque, em um esforço descomunal para hablar em português: “Vim para o Brasil para oferecer à minha família uma situação melhor”. Depois, apesar do infortúnio, com voz embargada, tentando conter o choro, complementa: “Estamos muito agradecidos pela atenção do povo do Brasil. Vocês são muito especiais”.

O caso de Joe e outros venezuelanos é apenas uma mostra de casos análogos. São milhares de situações de escravidão humana, em todo o mundo. O bicho-homem parece querer insistir na senzala. O jurista A. M. P. Malheiros, em “A escravidão no Brasil...”, escreve: “A escravidão é um dos maiores males que ora pesa sobre Vós. Cumpre examinar de perto as questões que ela sugere, e atacá-la com prudência, mas francamente e com energia, para que cessem as ilusões, e não durmam os Brasileiros o sono da indiferença, e da confiança infantil, sobre o vulcão e o abismo, criados pelo elemento servil da nossa sociedade”.

Preciso me valer da ironia moderna de Mário Quintana, para suportar tanta hipocrisia de minha parte, por permitir em mim a incapacidade em mudar o cenário triste em que vive muitos de meus semelhantes, e mesmo assim, em minha condição democrata, sigo escravizando a palavra. Ele, que em seu poema “Cocktail party”, anuncia: “Não tenho vergonha de dizer que estou triste, / Não dessa tristeza criminosa dos que, em vez de / se matarem, fazem poemas: / [...] Minha alma assenta-se no cordão da calçada / E chora, / Olhando as poças barrentas que a chuva deixou. / Eu sigo adiante. Misturo-me a vocês. Acho vocês / uns amores. / Na minha cara há um vasto sorriso pintado a vermelhão. / E trocamos brindes, / Acreditamos em tudo o que vem nos jornais. / Somos democratas e escravocratas. / Nossas almas? Sei lá! / Mas como são belos os filmes coloridos! / [...] / Desce o crepúsculo / E, quando a primeira estrelinha ia refletir-se em todas / as poças d’água, / Acenderam-se de súbito os postes de iluminação!

Ainda que sem querer, é nesse convívio fingidamente harmônico que percebo estar. Se abri alguma fissura, perdoe meu processo de construção da palavra. A culpa é da literatura, que em seu absoluto egoísmo, se auto intitula altruísta, não se dando conta de que é irônica.

Não pense que estou buscando verossimilhança, isso é apenas arte, mera poesia.
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