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23/04/2019 às 08h38min - Atualizada em 23/04/2019 às 08h38min

Loucura libertária

ENZO BANZO
Já é quase mês de maio, e, pra quem acompanha a cena da música independente em Uberlândia nos últimos 10 anos, nem é preciso avisar: é chegado o Doidimai! Este singular evento é sempre realizado no dia 2 de maio, valendo-se de uma similaridade sonora com a linguagem oral mineira: "dois de maio" reduz-se a "doi de mai", acaba por condensar-se em "doidimai" e, num movimento inverso, prolonga-se em "doido demais". A ideia aqui é ser doido no melhor sentido da palavra, reunindo trabalhos artísticos que fujam de padrões e clichês, com linguagens inovadoras, diferentes, provocativas... em suma: muito doidas.
 
Aplicada à arte, esta ideia de loucura é para mim sempre sinônimo do espírito libertário (na arte e na vida), muito bem resumido em nossa literatura pelo poema-manifesto "Poética", de Manuel Bandeira: "Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor / (...) Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare / - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação". Passados 10 anos do início do festival, e quase 100 do poema de Bandeira, esta prática transgressora é gesto hoje mais que necessário: trata-se de necessidade vital.
 
Acompanho o Doidimai desde sua gênese, ou devo dizer muito antes disso, testemunhando as peripécias de seu idealizador, Marcelo Pereira, o Chelo. O caráter universal da figura deste artista é um fenômeno que só Uberlândia poderia ter produzido: cabelo dreadlock ao melhor estilo rastafári; baterista em bandas de surf music; entendedor apaixonado das dores de amor de um Milionário & José Rico, de um Matogrosso & Mathias, de um Duduca & Dalvã; punk conhecedor das profundezas das garagens brasileiras, de onde um ignorante como eu mal identifica um rato de porão.
 
Nas primeiras vezes em que o vi, Chelo era baixista do Dead Smurfs, certamente a banda mais visceral/dionisíaca que houve por aqui. Nesta época topei com ele na entrada do Sesc, onde haveria um show do Pena Branca. O jovem roqueiro, que não devia ter 20 anos, me disse com toda empolgação de um adolescente que veria um rock-star: eu amo esse cara! Coloquei lado a lado em minha mente a verve punk do Dead Smurfs e a doçura regional de Pena Branca. E mandei um alô pro Oswald de Andrade: só a Antropofagia nos une.
 
Antropofágico, louco, libertador é o espírito que Chelo imprimiu ao Doidimai nestes 10 anos. Não importa se o 2 de maio caia na segunda ou no sábado, o festival é neste dia. Os locais variando, a curadoria não se repetindo a si própria, e muito menos reproduzindo as escolhas dos outros festivais pelo país. O que rola no Doidimai, só no Doidmai. E até podemos mesmo nos divertir com a pergunta: qual foi o seu Doidimai preferido? O meu foi aquele do Centro Cultural Veredas (que ficava na Tubal Vilela), no qual rolou a performance da "Caolho Company", espécie de show de rock-hapenning-palestra motivacional liderada pelo artista-produtor Alessandro Carvalho, enquanto Jack Will vendia produtos eróticos para a plateia.
 
Pois o Doidimai deste ano vai acontecer, pela primeira vez, no Teatro Municipal de Uberlândia, em uma louvável parceria com o projeto Música Importa. Depois de passear pelo underground local por uma década, considero um marco simbólico a ocupação deste espaço-totem da cultura da cidade para a celebração deste decênio da loucura artística e comportamental. Não vou fingir que não é comigo, estarei lá tocando (pela primeira vez no festival) com os Porcas Borboletas, ao lado do Chelo. O convite está feito e é para toda gente. Eu juro que é melhor não ser um normal.


*O conteúdo desta coluna é de responsabilidade do autor e não representa, necessariamente, a opinião do Diário de Uberlândia;
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