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26/02/2019 às 10h04min - Atualizada em 26/02/2019 às 10h04min

É de tirar o chapéu

NANDO LOPES
Tempos em que várias pessoas partiam em direção às grandes cidades brasileiras, com renovadas esperanças de adquirir melhores condições de vida. Tempos de pessoas vivendo em condições precárias opondo aos ideários de modernização, nos quais poetas e músicos esbarravam na cidade e realizavam saraus em suas residências. Tempos em que uma roda de pessoas cantarolando e batendo palmas, portando um pandeiro, um cavaquinho ou um tamborim, era o bastante para despertar a atenção das autoridades, prontamente a postos para intervir.

No dia 11 de outubro de 1908, precisamente na região do Catete do Rio de Janeiro, nasceu o menino Angenor de Oliveira. Devido às dificuldades financeiras de sua família, o garoto cresceu em Laranjeiras e adolesceu no Morro da Mangueira. Durante os seus 72 anos de vida exerceu diferentes profissões: pedreiro, lavador de carros, tipógrafo, zelador, cantor e compositor. Angenor contou em entrevista à Revista Cruzeiro que, quando trabalhara em uma obra, arranjou um chapéu para proteger-se do cimento que caia em sua cabeça. Assim surgiu o apelido Cartola, cognome concedido ao memorável compositor e sambista vivente da liberdade das noites cariocas.

Cartola foi um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, com as tradicionais cores verde e rosa do carnaval. O nome Estação Primeira refere-se à primeira estação de trem que tinha samba, depois da Estação Central do Brasil (Dom Pedro II) para o subúrbio. Já as cores verde e rosa foram sugeridas por Cartola por remeterem às lembranças dos carnavais durante o tempo de meninice. Em 1928 a Mangueira surge do apreço comum de uma comunidade em torno do samba. Eis os versos do primeiro samba feito por Cartola para Escola: “Chega de demanda/ Chega! / Com este time temos que ganhar/ Somos da estação primeira...”.

As composições musicais de Cartola começam a chamar atenção a partir dos anos 1930. Embora poucas pessoas conheçam a história do menino que perdeu a mãe muito cedo, que aprendeu a tocar cavaquinho com o pai e que foi para o Morro da Mangueira aos 11 anos, muitas pessoas conhecem Cartola pelas cores da verde e rosa ou por alguns dos clássicos da música brasileira que ele compôs. Entre as canções, destacam-se Alvorada, O mundo é um moinho e As Rosas não Falam. Suas canções estiveram na voz de grandes intérpretes, entre eles Araci de Almeida, Carmem Miranda, Beth Carvalho e Cazuza. Nos anos 1960 o restaurante Zicartola tinha por comissão de frente o casal mangueirense icônico Dona Zica e Cartola. O local foi reduto dos sambistas cariocas e frequentado por Nelson Cavaquinho, Nara Leão e Paulinho Viola. O disco solo de Cartola foi lançado apenas em 1974, aos 65 anos de idade.

Muitos capítulos seriam necessários para contar a vida de Cartola, que morreu aos 72 anos de idade. Poucos dias antes da sua morte, ele recebeu uma última homenagem vinda de Carlos Drummond Andrade. Assinalo um trecho da crônica que homenageia o sambista:  “Esse Cartola! Desta vez está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando”.

Cartola foi sepultado ao toque do bumbo e o coro de uma multidão cantarolando: “Queixo-me às rosas/ Que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti”. Pudessem as rosas ditar a relevância de Cartola para a música brasileira. Quisera que estas mesmas rosas dessem conta de decifrar a delicadeza com que o sambista compôs memoráveis versos, ou quem sabe, ainda, decifrar os anos discretamente vividos, contrariando todas adversidades. E, passados tantos anos, sua produção mantém-se viva em nossa memória. Como bem disse Nelson Sargento: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”.
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