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22/02/2019 às 18h16min - Atualizada em 22/02/2019 às 18h16min

Compadres

WILLIAN H STUTZ
Eles eram de uma amizade e cumplicidade pouco vista. Moravam em pequena cidade em um longe, no meio do nada. Para lá chegar só estrada de chão e se formasse chuva, nem carecia sair, pois só passava de carro de boi ou trator. Essas caminhonetes de propagandas, que sobem e descem barranco, andam dentro de córrego e, em falta de educação total, correm por praias esmagando ovos de tartarugas, por lá não valiam nada, faziam fila no massapé grudento da terra de cultura.

A vila era que nem tantas que visitei e descrevi aqui mesmo neste espaço. A igreja numa ponta, lupanar na outra. Este, também chamado de zona, casa de tolerância ou puteiro. Bem que tentei ser educado. Lupanar em primeiro momento me pareceu, digamos, mais discreto, nobre. Não funciona em certas ocasiões, melhor o popular mesmo. Dois moleques a correr descalços por toda banda. Sempre juntos, pareciam irmãos bem apegados. Assim, eram amigos de cortar dedo e juntar sangue como nos filmes de faroeste. Corte no pulso não tiveram coragem. Viram corpo de Seo Sinobelino mergulhado em poça de sangue, por conta de pulsos cortados. Contam que estrebuchou que nem frango, até morrer em suspiro de arrependimento. Não teve tempo de desdizer e se foi com olhos abertos e tristes. O motivo nem se sabia direito. Não devia a ninguém, tinha sítio bem zelado, pomar farto, galinhas, patos e até um peru imenso que dizia guardar para quando casasse. O peru andava velho, com as canelas grossas e escamosas pela era. Não respondia nem a assovio. Matou-se de solidão, disse o padre na missa de corpo presente. Contrariando as leis da Santa Madre Igreja, foi enterrado em campo santo. E quem ia saber disso? Contei, ali era o fim do mundo redondo ou plano, mas era o final.

Uma gota de sangue do dedão, furado com espinho de macaúba, resolveu o problema do ritual. Irmãos de sangue se tornaram de fato e de direito.

Cresceram, namoraram, casaram e filhos tiveram. Além de amigos se tornaram compadres, pois pegaram filhos um do outro para batizarem.

Trabalhão. Um montou venda com tudo quanto há. Aquietou bem na praça, onde recebia, vendia e trocava prosa. O outro tinha alambique famoso pela delícia de sua cachaça. Fornecia ao amigo em garrafões de cinco litros. Gente andava léguas para comprar.

Punha preço que fosse, vendia tudo. Tudo não, sempre guardava uma ou duas garrafas da mais fina porção de destilar. Uma para uso próprio e dos amigos, outra selava bem com rolha e cera de abelha e enterrava bem escondida. Único que sabia dos lugares de segredo era seu compadre/irmão de sangue. Nesse podia confiar. Dizia sempre:
 
− Compadre, essas pingas especiais vamos tomar no casamento de nossas filhas. A primeira que casar, seja sua ou minha, nós abrimos uma por uma. Combinado?

− Certim compadre, certim! Assim será feito!

A vida pastosamente foi passando. Corria em calma e preguiça.

Num amanhecer murmurante como sempre, aquele dia abriu diferente. Ninguém sabia explicar o ar pesado, difícil de atravessar, mesmo com tanta brisa fresca. Para bom observador um notar ficava. Galo não cantou naquela madrugada, cachorrada não latiu para a lua, que se fazia cheia deixando tudo em prata. Gatos sumiram e nem miado de paixão se fez ouvir. Urutau mãe da lua se aquietou e não assustou cavalo em pasto. A Caburezinha tão chegada a quintais e praças não piou seu canto gargarejado,

O funesto estava anunciado e ninguém percebia.

Acontece que um dos compadres, não o das pingas, o da venda, tinha saído de madrugada para pescar e, como estava demorando demais a voltar, a venda não abria, criou-se desconfiança. Toca as gentes a procurar. A canoa acharam emborcada na margem do rio, do compadre nem aviso nem avisto. A procura levou semanas. Nada. Assim, foi dado como morto pelo delegado da comarca vizinha, que comandava buscas.

A tristeza tomou conta. Em luto a vila ficou por semanas a fio.

O tempo. Passaram-se anos e mais anos. E depois desse tanto, mais um muito de tempo se passou.

O fato caiu no esquecimento, ficando aceso apenas na viúva, que nunca mais se casou e só de preto se vestia, nos filhos que agora tinham netos e, claro, no peito do único amigo de verdade sobrevivente a tudo. Não abriu as pingas enterradas para casamento de filha. Esperou em paciência. Acreditava que do nada o amigo iria voltar, de meio de picada na mata.

Foi nada não. Quando inteirou trinta anos do desaparecimento, e decidido a por fim naquilo tudo, resolveu fazer baita festa em homenagem ao desaparecido. Convidou a vila toda, armou torda com mesa farta, muita comida, cerveja a ufa e, para completar, com os filhos e mapa na mão, saiu a catar as tantas garrafas de pinga enterradas.

Colocou tudo em mesa de toalha branquinha e em discurso contou a história da cachaça para todos, que agora iam em cerimônia brindar ao parceiro que se foi.

Serviram-se e após o levantar de braços deram talagada, para apreciar o gosto de pinga tão especial envelhecida por três décadas.
Depois do gole fez-se silêncio barulhento por dentro. Ninguém deu um pio. O dono da festa, de bochecha cheia, cuspiu com força a bebida, no que foi seguido por todos. O velho deu uma gargalhada tão forte que tremeu a lona. E ainda quase explodindo de tanto rir gritou para a multidão:

− Esse compadre fdp era um moleque dos infernos. E não é que nesses anos todos que lhe mostrava minhas pingas especiais ele, na calada, corria lá, bebia e colocava água no lugar! Sacanagem com trinta anos de frente!

Adiantava xingar? A festa durou a noite inteira. E o velho amigo, agarrado a uma de suas pingas de verdade, sentado em tronco beirando mato, ria e chorava. Chorava muito de saudade.
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