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19/02/2019 às 12h47min - Atualizada em 19/02/2019 às 12h47min

Samba que dá na cabeça de preto

ENZO BANZO
Foto: Reprodução Instagram
Lá se vão mais de dez anos, estava eu em uma das antológicas edições do Festival Jambolada, aquele momento começo de programação, ainda pouca gente entre os ecos da Acrópole, subia ao palco uma das novas bandas locais da época, Umbando e o Fim da Quadrilha, quem se lembra? Curtia o som dos caras, mas o que me prendia a atenção era o percussionista, um grande moleque negro que eu nunca tinha visto na vida, ficava difícil se atentar a qualquer coisa diferente da sua presença. Quase no fim do show, o garoto assumiu a bateria, não era jazz mas me senti em New Orleans, toda a música se amarrava ao som emitido por suas baquetas, um jeito muito pessoal de se esbaldar no instrumento.
 
Entendi melhor essa sensação pouco tempo depois, tocando violão no também antológico e saudoso espaço Goma. Abri o palco, quem quisesse poderia vir tocar comigo, e aquele jovem apareceu empunhando algum instrumento de percussão, não lembro qual. Impossível esquecer, entretanto, o profundo sentido de integração com a música provocado por sua performance: parecia adivinhar aonde eu ia, acertava os breques nos momentos de improviso, sugeria, silencioso, novas intenções. Não me recordo de ter conversado com ele naquela noite. Em música, já éramos íntimos.
 
Não sei se passados meses ou dias, ensaiávamos os Porcas Borboletas porque faríamos (para nossa euforia) alguns shows com participação do Otto. Logo veio a óbvia constatação: para acompanhar o bruxo branco precisaríamos de um percussionista. Nome vai, nome vem, alguma voz propôs, vamos chamar o Jack. Jack? A descrição logo me levou àquele que tanto despertava minha curiosidade. Ele veio, a gente foi. Nos tais shows com Otto, a cada reencontro a primeira pergunta do galego pernambucano era: "cadê Jack?" Ao apresentar os músicos da banda, Danislau evocava, em nosso percussionista, toda a ancestralidade negra que é, de longe, o traço mais relevante da cultura uberlandense: neto de Grande Otelo, sobrinho de Pena Branca, primo do Alexandre Pires... com vocês: Jack Will! (E o aplauso sempre foi e sempre será maior pra ele).
 
Hoje é difícil andar pela cidade e não se deparar com as repercussões da música e da figura de William Jack. Parece estar em todos os lugares, parece tocar todos os dias e, a cada show, parece nunca esgotar a sua entrega à profunda incorporação da música, o que se estende a quem o assiste, em estado de absoluto fascínio. Para além de toda magia e carisma, interessa no artista Jack o seu poder de síntese: entre a cultura popular local, o jazz americano e a música erudita; entre o talento natural e o estudo dedicado; entre o domínio técnico do instrumento e a liberdade do improviso, extraindo a mesma potência musical de uma bateria, de um vibrafone, de uma lata velha de tinta, das paredes de um bar.
 
Não por acaso, todos os grandes músicos que têm passado por aqui acabam se apaixonando por Jack. Toninho Horta não perde uma feijoada na casa da Dona Joana. Márcio Bahia, baterista de Hermeto Pascoal por mais de 30 anos, chegou a visitar Uberlândia só para tocar na formatura do nosso prodígio, evento que, aliás, resumiu a mistura-síntese do aluno-professor: peças eruditas e populares, orquestra, coral, banda de rock e terno de moçambique, tudo reunido na miscelânea festiva da irmandade jackwíllica.
 
Certa vez fui ver o Jack concorrer em um festival na UFU, havia premiação e tudo mais. Antes de começar, era para mim o grande favorito. Chegou a vez do Jack, e ele subiu no palco acompanhado por um monte de músicos, grooveando e cantando o seu refrão: "samba que dá na cabeça de preto, é samba que dá na cabeça de preto, é samba que dá". Ganhou o festival? Não. Jack e sua banda A Vida É Uma Festinha foram desclassificados por exceder o tempo máximo para execução. Porque para Jack não importava vencer, não importava o festival, não importava o regulamento. O que lhe interessava (e interessa) era ser a ponte para a livre manifestação da música no tempo e no espaço (e aí não venham pedir para parar porque se passaram cinco minutos). A vitória de Jack é a materialização e a disseminação da deusa música, dever místico que cumpre a cada hora e dia. Vencer, pro Jack, é se integrar à música e irradiá-la aos que estão a sua volta: e aí entramos nós, privilegiados, felizes recebedores do samba que dá na cabeça do preto.
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