Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90
14/02/2019 às 09h08min - Atualizada em 14/02/2019 às 09h08min

Ausências

IVONE GOMES DE ASSIS
Cifras e códigos é tudo que sobra. Nos últimos dias o país vem se arrastando sob o peso das notícias duras, não apenas as de praxe, roubos, assassinatos e trapaças, mas, sobretudo, acidentes. Acidentes disparados com jogadores, barragens, aviões, helicópteros... E o rastro deixado por tudo isso se resume em dor e saudade.
Em uma espécie de poética da solidão, encontramos, em meio ao desamparo, a dor do existir. Refiro-me à dor do existir que ataca os familiares daqueles que perderam suas vidas; e a soma da agonia leva à solidão, à perda do norte, à tristeza irreparável, como a resposta de um pai que, sentado ao barranco dos destroços da barragem de Brumadinho, com o olhar em nevoeiro, perdia-se no tempo, ao ser questionado sobre o que ele aguardava a tanto tempo, por ali, respondeu: “Espero meu filho sair da lama”.

Não há como mensurar a condição de vítima de quem perdeu a vida e de quem perdeu um sonho. Ambos são vítimas. Um perde a vida, o outro perde a paz, que foi de manto, cobrindo seu ente querido. Brota-se um vazio infinito.

Possivelmente escritos em momentos de duelo travado entre o psíquico do eu e o poeta, os poemas de Florbela Espanca apresentam muito dessa dor. Nesse sentido, a busca de si pode ser entendida como ponte de superação. Florbela escreve a dor, a solidão, a ausência, a morte... traçando teias que sustentem seu vazio existencial. O eu lírico põe-se a advogar pelo “Eu”, como se justificasse suas ações e ansiedades ante a vida.

Na condição de ser humano que somos, podemos nos entender como malha trançada de amor e saudades. E como preencher vazios que se preenchem com sentimentos rasgados, em que o que se tem a dar (o amor), não se tem a quem doar, porque este alguém se transformou em saudade, e este é o único sentimento que preenche o vazio que ficou?

Na interpretação de Lacan, “nenhuma linguagem pode dizer a última palavra sobre a verdade do ser". Em acordo com o filósofo, sei que a linguagem que uso é mero ponto de vista, não uma regra. Quero, tão somente, convidar o ouvinte para ler comigo o soneto “Eu”, de Florbela Espanca, em que, verso a verso vai apresentando faíscas da solidão: “Eu sou a que no mundo anda perdida, / Eu sou a que na vida não tem norte, / Sou a irmã do Sonho, e desta sorte / Sou a crucificada... a dolorida... // Sombra de névoa tênue e esvaecida, / E que o destino amargo, triste e forte, / Impele brutalmente para a morte! / Alma de luto sempre incompreendida!... // Sou aquela que passa e ninguém vê... / Sou a que chamam triste sem o ser... / Sou a que chora sem saber porquê... // Sou talvez a visão que alguém sonhou, / Alguém que veio ao mundo pra me ver, / E que nunca na vida me encontrou!”.

Parafraseando a poetisa búlgara Blaga Dimitrova, podemos dizer que “o mundo é multidimensional” e infinito. E na sua infinitude, continua a fugir-nos.
O filósofo francês Jean Baudrillard, completa “Se não houvesse as aparências, o mundo seria um crime perfeito, quer dizer, sem criminoso, sem vítima [...]. Um mundo do qual a verdade se teria retirado para sempre e cujo segredo não seria nunca desvendado, por falta de marcas”.

                Ora, sabemos que a história é feita de vestígios, e não há como apagar as evidências. E como escreveu João Cabral de Melo Neto, “Certos autores são capazes de criar o espaço onde se pode habitar muitas horas boas: um espaço-tempo [...]”, e habitável.

No entanto, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “A flor e a náusea” do livro “Rosa do Povo”, de 1945, escreve: “Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera [...]. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. [...].”
Leia Também »
Comentários »
Diário de Uberlândia | jornal impresso e online Publicidade 1140x90