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27/12/2018 às 09h00min - Atualizada em 27/12/2018 às 09h00min

Tabacaria

IVONE GOMES DE ASSIS
 Rumo ao incinerador, uma multidão se esquece de que o amanhã bate à porta. Dos grilhões que aprisionam grande parte das pessoas contemporâneas têm-se cigarros, drogas, álcool, obesidade... Itens, estes, que são pontes que conduzem à depressão e/ou ao câncer. Segundo o oncologista Fernando Maluf, de acordo com os dados do Globocan/2018, os casos de câncer, no mundo inteiro, vêm aumentando e os itens mencionados (mas não só) são os grandes vilões, em especial o tabagismo. Ainda, mais assombroso é saber que 2018 fechará com média de mais de nove milhões e meio de mortes por câncer, em pessoas de todas as idades.

O luso poeta AjAraújo, médico e humanista, autor de diversas obras acadêmicas e culturais, no ano de 2005, escreveu “A última tragada, / a última baforada, / Melhor que se vá o cigarro, / que até se quebre o jarro / Mas, que depois venha o canto da cigarra, da anunciada primavera, / de uma vida que prossiga / em sua eterna busca e caminhada...

O poeta, em sua narrativa, convoca a vítima do vício a renunciar ao achaque, que se resigne, a fim de se libertar das coerções resultantes da fraqueza humana, sob o comando da indústria lícita ou ilícita do tabaco. O poeta tem consciência da luta, inclusive da abstinência, contudo crê na capacidade do ser, de se libertar. Esta certeza do eu lírico pode ser observada nos versos: “Melhor que se vá o cigarro, / que até se quebre o jarro / Mas, que depois venha o canto da cigarra, da anunciada primavera”.

Sabe-se que o vício leva suas vítimas ao vazio, à incerteza, ao ‘vitimismo’. E, quando interrogadas, quase sempre a resposta é “não sou ninguém”, “não sou nada”, “lutar por quê?”, “a vida é uma rotina”, no entanto, essas vítimas carregam dentro de si todos os sonhos, porque querem alcançar o amanhã, querem ser motivo de orgulho para o outro. Infelizmente, nem sempre conseguem dar a volta por cima. Com isso, desacreditam das possibilidades, e também de si.

No poema “Tabacaria”, Fernando Pessoa narra: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo // Janelas do meu quarto, / Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é [...] / Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. / Estou hoje dividido entre a lealdade que devo / À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, / E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. / Falhei em tudo. / Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. [...] Fui até ao campo com grandes propósitos. / Mas lá encontrei só ervas e árvores, / E quando havia gente era igual à outra. / Saio da janela, sento-me numa cadeira. / Em que hei de pensar? // Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? / Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! [...]. Não, não creio em mim. [...] O mundo é para quem nasce para o conquistar. [...] Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; / Mas acordamos e ele é opaco, / Levantamo-nos e ele é alheio, / Saímos de casa e ele é a terra inteira [...] Fiz de mim o que não soube, / E o que podia fazer de mim não o fiz. [...] Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. / Quando quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara. / Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido. / Estava bêbado [...] / E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. [...] o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu”.

Tal qual o poeta, milhões, em sua solidão, seguem em fila, rumo ao incinerador.
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