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21/05/2018 às 12h03min - Atualizada em 21/05/2018 às 12h03min

​A inutilidade de ter dó

ALEXANDRE HENRY | COLUNISTA
 
Há alguns dias, eu decidi ajudar uma pessoa da família que tinha um gato, já com dezesseis anos de idade, mas que não podia continuar com o bichano em casa. A única saída era levar para uma fazenda, a menos que alguém da cidade decidisse adotá-lo. Publiquei então uma foto do gato no Facebook e expliquei o que estava acontecendo. Deu certo: em pouco tempo, uma alma caridosa se dispôs a dar um novo lar a ele na cidade mesmo. Gente que gosta de gato e, com certeza, vai ter o maior carinho por aquele felino fofo.

Porém, apesar de eu ter ficado feliz pela eficácia da minha postagem, também fiquei triste porque ela gerou alguns comentários muito desagradáveis. Uma pessoa escreveu: “Que horror. Tratado como um objeto”. Outra: “Coitado do Gatão, sendo rejeitado na velhice!”. A maioria publicou comentários expressando dó. Não teve uma alma viva que perguntasse os motivos do gato não mais poder ficar lá. Interessava, antes de tudo, demonstrar que se estava sentindo dó ou condenar a saída do bichano da casa. E se, na casa, houvesse algo que estivesse fazendo mal ao gato? E se a pessoa que fora sua dona por mais de uma década estivesse doente, sem condições de dar um tratamento digno ao animal? Havia um universo de razões possíveis para o ato de doar o gato, muitas delas para realmente dar uma vida melhor a ele, mas o povão precipitado só queria sentir dó ou tacar pedra, mesmo sem saber direito o que estava acontecendo.

Esse tipo de comportamento popular é muito comum. Conforme a situação, a gente taca a pedra primeiro e depois pergunta o que estava acontecendo. Ou nem pergunta: fica só lembrando de como conseguiu acertar a pedrada bem no meio da testa de... de quem mesmo? Isso não importa! Linchamentos geralmente acontecem assim. Alguém fala alguma coisa, outro grita “pega, pega”, um terceiro dá o primeiro soco e, quando se vê, a multidão está tirando a vida de um ser humano sem saber a razão.

Esse é um lado do problema que vi a partir da minha postagem, problema sobre o qual reflito há tempos. O outro é o sentimento de dó. Você já conhece o significado, mas vamos ao dicionário mesmo assim. “Dó: sentimento de pena com relação a alguém, a si mesmo ou a alguma coisa; compaixão”. Dó é isso: um sentimento. É natural que tenhamos compaixão por uma pessoa que passou por um infortúnio ou por um gato idoso que vai ter que arrumar um novo lar. A questão do dó (sim, é um substantivo masculino – é errado dizer “a dó”) é que ele geralmente não deixa espaço para a reflexão.

Em tempos de redes sociais, a revelação de um acontecimento lamentável, como o do gato perdendo sua casa, é seguida de dezenas de comentários expressando dó. Dessas dezenas de pessoas que sentiram pesar, porém, poucas irão tomar alguma atitude para mudar a situação. Para elas, é suficiente saber que se sentiu compaixão, algo que as faz sentir mais humanas, melhores que as outras pessoas que nada sentiram, compaixão essa seguida de um comentário para que todo mundo saiba que elas são pessoas boas por sofrerem com aquela situação. Ponto final. Passemos para o próximo acontecimento digno de pena. A única reação provocada pelo dó foi a de postar um comentário em rede social, nada mais do que isso.

Em outros casos, esse sentimento de pena até faz a pessoa a agir, mas sem reflexão e, com isso, a ação costuma ser atrapalhada. Quem se aproveita disso são os malandros – e como há malandros no Brasil! Tem gente que vive de explorar o dó alheio. Sabe que o brasileiro é uma manteiga derretida e, por isso, elabora as formas mais criativas de provocar dó. Em alguns casos, para dar golpes mesmo. Em outros, para fazer daquilo uma forma de viver sem ter que trabalhar. Quem aqui não conhece uma história ao menos de gente que vive com aquela cara de sofrimento só para ganhar a ajuda dos outros? Explorar o dó alheio é um esporte nacional, acredite em mim.

É por essas e outras que sou tão implicado com o dó. Se é natural sentir piedade de alguém, se isso é inevitável, então que esse sentimento seja logo substituído por uma reflexão profunda. O que será que aconteceu para se ter chegado a essa situação? Será que essa pessoa não está nessa situação porque fez por merecer? Aí, depois de muito refletir, parta-se então para a ação, se for o caso. Uma ação pensada, segura, desacompanhada de sentimentos que sufoquem a capacidade de reflexão. Só assim é possível fazer do dó um sentimento positivo. Fora dessas situações, sentir dó não serve para nada, a não ser para inflar o próprio ego ou para fazer bobagem.
 
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